domingo, 27 de dezembro de 2015

Sala de Machado de Assis

Primeiro presidente negro na ABL desde Machado de Assis

Publicado há 1 dia - em 9 de dezembro de 2015 » Atualizado às 18:11 
Categoria » 
Patrimônio Cultural













Desmitificando a idéia de negro submisso




Por Martiniano Silva Do DM

Li no jornal Folha de São Paulo (4 de dezembro 2015, Poder A15), informação de Luiza Franco segundo a qual a Academia Brasileira de Letras elegeu seu primeiro presidente negro desde Machado de Assis. Trata-se do professor e escritor carioca Domício Proença Filho, com mandato até o fim de 2016. Quinto ocupante da cadeira 28, entrou na ABL em 2006, sucedendo Oscar Dias Corrêa. Escreveu 65 obras, incluindo livros didáticos e romances; sucederá o diplomata Geraldo Holanda Cavalcanti.

Como sabemos e informa Luiza Franco, Machado de Assis “não costumava falar sobre a questão da raça e ocupou a cadeira de 1897 a 1908”. Pouco importando o modo de proceder do maior escritor brasileiro, Machado de Assis, só agora, em mais de 100 anos de história, temos Proença como o segundo presidente negro da ABL! Seria por que, a vida toda, “se debruçou sobre a questão do negro na literatura e no Brasil?” Seria um gênio? De todo modo, conforme escreve Luiza Franco, “na presidência da casa, não fará do assunto uma bandeira”. Questão racial nunca foi objeto da preocupação dessas instituições. Proença já avisou:
“A Academia não discutirá isso. A questão racial nunca foi sequer aventada aqui, seja contra ou a favor. Eu não fui cota. Academia não me elegeu por eu ser um negro escritor”, diz.

Seja como for, o certo é que a posição assumida por Domício Proença Filho, não é muito diferente da que assumiu o velho bruxo de “Cosme Velho”, Machado de Assis, a despeito de ser um intelectual dos mais privilegiados e inteligentes das Américas e do mundo. Assim como Proença, o ilustre autor de Dom Casmurro, de tão influenciado pelo mascarado racismo “a brasileira”, “fugiu” do tema relativo às suas origens africanas. Sobre isso, aliás, foi severamente criticado por nada menos que a glória que é Mário de Andrade, ao escrever:

“Machado de Assis não profetizou nada, não combateu nada, não ultrapassou nenhum limite infecundo. Viveu moral e espiritualmente escanchado na burguesice do seu funcionarismo garantido e muito honesto, afastando-se os perigos visíveis. Mas as obras valem mais que os homens! E se o Mestre não pode ser um protótipo do homem brasileiro, a obra dele nos dá a confiança do nosso mestiçamento e vaia os absolutistas raciais com o mesmo rijo apito com que Humanistas vaiaram o setentarismo das filosofias de contemplação (Andrade, 1972, pp. 108 e 109).

Embora reconheça os irrefutáveis méritos literários de Machado de Assis, inclusive admitindo que “as obras valem mais que os homens”, Mário de Andrade, “sem meias palavras”, mostra que a estranha posição assumida pelo velho bruxo com relação ao tema enfocado tem dimensão superior à dos meros dúbios e ambíguos, ainda existentes, parece-nos já vivida e acentuada nas “dúvidas da infância” de Machado de Assis, período onde, humilhado e fugindo do negro como o diabo da cruz, teria tido vergonha das próprias origens de ser moleque gago, sifilítico, epilético, sem rumo, vagabundo, posicionamento dotado de preconceito racial ainda bem vivo na maior parcela da sociedade brasileira com relação aos vagabundos de hoje em dia, chamados “meninos de rua”, “desocupados” e marginais, em maioria afro-brasileiros.

No particular abordado o emérito Dante Moreira Leite, refutando tese conservadora de Gilberto Freyre, segundo a qual “o homem de talento sempre pode elevar-se às mais elevadas posições”, como ocorreria com relação a machado de Assis e Gonçalves Dias, por exemplo, é taxativo em afirmar que Machado de Assis, para ser o que é, no sagrado ofício de escrever, escondeu sua aparência de mulato: “Machado de Assis de várias maneiras procurou esconder sua aparência de mulato, enquanto Gonçalves Dias não conseguiu, pelo fato de ser mestiço, casar-se com moça de classe mais alta” (Leite, 2002, p. 371).

E com relação ao segundo presidente negro, Domício Proença Filho, na ABL? O fato de estarmos em pleno século 21, reduziria o racismo e o sofrimento desse novo homem negro no elevado status de presidente? Consoante afirmou, não vai tratar do assunto.  Não vou opinar sobre sua obra, por exemplo, “A trajetória do negro na literatura brasileira”, que enriquece o conteúdo e bibliografia do Racismo à brasileira: raízes históricas, em 4ª edição (2009).  Assim, o que ocorre com os ilustres membros da ABL com relação ao preconceito social e racial, é o mesmo que acontece em outras instituições culturais congêneres, onde o assunto, além de ser dissimulado, pra não dizer escondido, não vem sendo lembrado. Não é objeto de discussão, debates, abordagens, polêmicas. Mas o pior é o que ocorre no ambiente universitário brasileiro, onde, com as devidas exceções existentes, está explicitado e comprovado pelo que chamo “racismo acadêmico ou universitário”, justificando um dos capítulos do livro acima citado, desde sua primeira edição em 1985. Ali ousei mostrar e desmistificar a velha ideia de negro submisso, que não se importava com sua situação de cativo, devendo ser por isso, certamente, que virou mero objeto de pesquisa acadêmica.
(Martiniano J. Silva, escritor, advogado, membro do Movimento Negro Unificado (MNU), da Academia Goiana de Letras e Mineirense de Letras e Artes, IHG-GO, UBE-GO, mestre em História Social pela UFG, professor universitário, articulista do DM –martinianojsilva@yahoo.com.br)


domingo, 20 de dezembro de 2015

Entre estrelas!

Conheça a mulher que levou a língua portuguesa até o espaço interestelar
Janet Sternberg é norte-americana, mas foi escolhida para gravar a mensagem em português que viaja nas missões Voyager para os lugares mais distantes do universo. E garante: não tem medo de extraterrestres





/12/2015 - 14H12/ ATUALIZADO 14H1212 / POR ANDRÉ JORGE DE OLIVEIRA
JANET STERNBERG: A NORTE-AMERICANA É PROFESSORA, DOUTORA E ESPECIALISTA EM MÍDIA. QUANDO JOVEM, MOROU NO RIO DE JANEIRO, ONDE APRENDEU A FALAR PORTUGUÊS COMO UMA NATIVA (FOTO: REVISTA GALILEU)


Apesar de Janet Sternberg não ser nativa do Brasil nem de nenhum outro país colonizado por Portugal, foi a voz dela que levou a língua portuguesa até o espaço interestelar. Em 1977, Janet foi convidada por uma equipe chefiada pelo astrônomo Carl Sagan para pensar em uma saudação que seria enviada para fora do Sistema Solar. Gravada em um disco de cobre banhado a ouro, a mensagem viajaria eternamente pelo cosmos com as duas naves Voyager, lançadas pela Nasa em 1977. É como um náufrago que manda um bilhete dentro de uma garrafa pelos oceanos. A linguista deveria escolher uma frase que representasse toda a comunidade lusófona do planeta Terra, estimada em cerca de 250 milhões de pessoas espalhadas por nove países. Diante de uma tarefa tão ingrata, Janet decidiu pensar em algo que simbolizasse o lugar que a viu crescer — o Brasil. Para ela, os dizeres que melhor nos representavam eram: “Paz e felicidade a todos.”
Nascida em Nova York, ainda criança mudou-se com a família para o Rio de Janeiro, onde aprendeu a falar fluentemente o português. Voltou aos Estados Unidos com 13 anos e, em 1975, ingressou no Departamento de Línguas da Universidade Cornell para cursar pós-graduação. Foi ali que, dois anos mais tarde, Sagan e sua equipe recrutaram às pressas cerca de 40 pesquisadores para gravar 55 saudações em línguas diferentes, arcaicas e modernas, para compor a cápsula do tempo cósmica batizada de Golden Record. Em entrevista a GALILEU, Janet Sternberg conta como foi o processo de recrutamento, o dia da gravação, relata como era sua relação com as outras “vozes” do projeto e também com Carl Sagan, que na época era um “João Ninguém”. Ela explica ainda o porquê da frase “Paz e felicidade a todos”, além de descartar a possibilidade de uma civilização alienígena chegar a interceptar as naves e os discos. A seguir, os principais trechos do bate-papo.

A senhora é norte-americana. Como aprendeu a falar português?
Ninguém da minha família é do Brasil, todo mundo é de Nova York. Por motivos pessoais, meu pai resolveu levar a família para morar no Rio de Janeiro. Foi assim que aprendi a falar bem o português — inclusive o sotaque, porque peguei quando criança. Voltamos para os Estados Unidos quando eu tinha 13 anos. Foi só muitos anos depois que comecei a estudar linguística e reativei meu português, já na Universidade Cornell. Estava ensinando português e estudando linguística das línguas românicas — português, espanhol, francês. Foi nessa época que fizeram essas gravações.
A senhora tomou conhecimento do projeto da Golden Record quando estava em Cornell. Pode contar como soube e de onde surgiu seu interesse em participar?
Era um departamento de línguas muito grande em comparação com o de outras universidades, ensinava algo como 20 ou 25 línguas diferentes, inclusive as exóticas. As outras instituições talvez ensinassem cinco ou dez línguas. E, por acaso, o astrônomo Carl Sagan era o chefe da equipe do projeto Golden Record, que é apenas uma parte da missão das Voyagers. Aliás, a mensagem foi uma ideia que acrescentaram ao projeto. Um dos cientistas falou: “Vamos, então, fazer uma espécie de mensagem na garrafa”. E foi aí que a equipe de Carl Sagan começou a trabalhar no Golden Record, em 1977. Há um livro chamado Murmurs of Earth (Murmúrios da Terra, em tradução livre) no qual a equipe conta essa história. Eles estavam com pressa para fazer essa gravação, e decidiram mandar imagens, músicas, falas de personalidades famosas. Então resolveram convidar pessoas que representassem tantas línguas quantas fossem possíveis. Pessoas normais, que não fossem famosas nem celebridades, simplesmente para gravar saudações ao universo.
Como as pessoas foram recrutadas para o projeto?
Era 1977, não havia internet, mal tinha computador. Pessoas normais usavam o correio e telefone. A equipe de Sagan ligou para o departamento de línguas, e a secretária pegou uma lista de todo mundo que ensinava todas as línguas. Escolheram aqueles cuja pronúncia fosse melhor, o que chamamos na linguística de nativo. Eles me convidaram para representar o português — e também chamaram uma série de outras pessoas. Não são 55 pessoas, são 55 mensagens em línguas diferentes. Com relação às línguas clássicas, por exemplo, acho que algumas pessoas fizeram mais de uma gravação. Em uma certa tarde, recebi um telefonema explicando sobre a existência de um projeto de Carl Sagan, um professor de astronomia que, naquela época, era um “João Ninguém”. Eles queriam que eu aparecesse em tal lugar às 9 da manhã para realizar um projeto especial. No dia seguinte, fui ao local e dei de cara com muitos colegas e com vários outros que eu não conhecia.

E a senhora já sabia da importância da missão?
Ninguém sabia o que era. Aí falaram que estávamos lá cada um representando a sua língua. A língua não, o país. Eu estava representando todos os lusófonos, não só o Brasil como também Portugal, Macau, Angola, Moçambique, Goa. Disseram que estávamos lá para gravar saudações para o universo. Devíamos ser breves, gravar um cumprimento do planeta Terra. Quando saímos da cabine, nos pediram para escrever o que falamos e a tradução — então, obviamente, não podia falar besteira. É importante lembrar que, naquele tempo, não se sabia nem se iriam completar os discos, nem se iriam completar as Voyagers, nem se haveria o lançamento. Hoje, mais de 30 anos depois, olhamos para a missão e dizemos “uau, as Voyagers duraram esse tempo todo sem nenhuma manutenção, sem mão humana”. Quantas máquinas conhecemos no mundo que funcionam depois de tantos anos sem nenhuma limpezinha, óleo, nada?
Qual é a reação das pessoas quando a senhora diz que participou do projeto?
Muito raramente vejo pessoas que acham que essa missão foi um erro, que estamos entregando o nosso lugar, que agora os extraterrestres vêm atacar a gente. Isso não me parece razoável. Penso que seja mais uma questão de que, realmente, jogamos uma garrafa no mar com uma mensagem. Sou dos anos 1970, da época da Guerra do Vietnã nos Estados Unidos, então, para mim, a ideia de paz e felicidade não é só uma coisa do português: faz parte também da minha época e da minha história pessoal. O que é interessante é que cada uma das mensagens era diferente das outras. Algumas pessoas se confundem e pensam que todas diziam “Paz e felicidade a todos”, mas não. A mulher que falou um dos vários dialetos chineses disse: “Você já comeu arroz hoje?”. Não é porque ela quis falar do arroz, e sim porque esse é o cumprimento típico na China, como o “Como vai você?”.
A senhora acredita que existe uma possibilidade de alienígenas interceptarem as Voyagers e ouvirem o disco?
Nunca me preocupei com os extraterrestres. Tem gente que me pergunta se eu não fico aflita pensando que os extraterrestres vão vir me procurar por causa da minha voz. A minha única preocupação era com relação ao que os outros terráqueos iam pensar daquilo, ao que os brasileiros iam pensar, os portugueses, as pessoas que eu estava representando. Fiquei pensando em uma das coisas das quais os indivíduos se orgulham, pelo menos no Brasil, que eu saiba, e talvez nas outras culturas de língua portuguesa, que é a paz. Eu não nasci ontem, sei que Portugal tem uma história de colonização bastante violenta, guerras em Angola... Mas gostaríamos de ter paz, nós nos imaginamos como pessoas de paz. Acho que o Brasil se orgulha disso, apesar de ter sido violento com os índios e com outras minorias.
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Chegou a conversar pessoalmente com Carl Sagan?
Não. Primeiro porque era verão nos Estados Unidos, a universidade não estava em aula. E ele não trabalhou diretamente na parte das saudações. Foi uma mulher da equipe quem participou. Ele estava lidando com as pessoas acima e com seus pares. Até acho engraçado, porque muita gente imagina que ele estava em todo lugar, fazendo tudo, mas era uma missão bem complexa.
A Voyager 1 saiu oficialmente do Sistema Solar em 2013. Como a senhora se sente sendo um dos pouquíssimos seres humanos a ter a própria voz viajando pelo espaço interestelar?
É uma sensação de ter feito uma coisa muito única. Algo que pouquíssimas pessoas fizeram, e uma experiência que dificilmente pode ser repetida — se bem que existe algum projeto de mandar novas mensagens, mas nunca será igual a esse. Tenho muitos colegas que gostam de ficção científica, que inclusive já escreveram romances de ficção científica, e eu não gosto. Sempre digo que a minha ficção foi realidade, já sou interestelar e não preciso ler livros sobre pessoas que vão para o espaço porque já estou lá. Não faz meu gênero, gosto de outras coisas, mais de detetives do que de coisas do espaço. Porém, isso me faz rir um pouco, porque a Nasa é uma entidade norte-americana, mas eles tentam ser muito internacionais, e gosto disso.
Se a saudação fosse gravada hoje, a senhora mandaria a mesma mensagem ao universo?
É difícil, teria primeiro de imaginar que não gravei a outra — porque se fosse gravar de novo sabendo que já tinha feito, gravaria a mesma coisa porque deu certo. Se você me pegasse num dia pessimista, talvez hoje eu dissesse algo do tipo: “Fica longe, não vem para cá porque temos uma mania de destruir tudo aquilo em que tocamos. Se você estiver a caminho daqui, pega uma direita e vai para outro planeta, pois aqui só fazemos bagunça”.


sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

É este o novo mundo: coisificação de pessoas, ressentimentos e esperança?

"O mundo vai ser negro", diz filósofo camaronês
Teórico camaronês do pós-colonialismo Achille Mbembe é o homenageado deste ano com o Prêmio Irmãos Scholl, na Alemanha, por seu incômodo livro "Crítica da Razão Negra".




Achille Mbembe: "Crítica da Razão Negra"

"As lógicas de distribuição da violência em escala planetária não poupam nenhuma região do mundo, não mais que a vasta operação em curso de depreciação das forças produtivas", constata o filósofo e historiador Achille Mbembe no epílogo de seu livro "Crítica da Razão Negra". Trata-se de um pontapé inicial rumo a uma nova visão de mundo, o que comprova a atualidade da obra do teórico camaronês, sobretudo quando se pensa nas muitas guerras e conflitos ou nos incontáveis jovens desempregados, principalmente na África.

E foi por esse olhar afiado "sobre a sociedade mundial globalizada, que não remove apenas mercadorias e capital, mas também pessoas e força de trabalho", que Achille Mbembe recebeu em Munique, na segunda-feira (30/11), o Prêmio Irmãos Scholl. A premiação acontece anualmente em homenagem a uma obra "que dê provas de independência intelectual, seja capaz de incentivar a liberdade civil, bem como a coragem moral, intelectual e estética".

Rebelião de estudantes na África do Sul: Soweto dos anos 1970

Justiça universal no mundo
A questão simples, porém tocante, abordada por este filósofo político, acaba sendo "a questão do mundo": O que é o mundo? Como são "as relações entre suas diversas partes?". Como viver neste mundo? A quem pertencem os recursos? O que move ou ameaça este mundo? Todas essas são questões mais atuais que nunca. A resposta de Mbembe é a visão de uma comunidade universal: "Só há um mundo e todos temos direito a ele". No entanto, segundo a tese do teórico, antes que possamos criar um lar como seres humanos neste mundo comum, precisamos tratar da história dos traumas e das feridas. "Restituição e reparação estão, portanto, no centro da própria possibilidade de construção de uma consciência comum do mundo, ou seja, do cumprimento de uma justiça universal", escreve o filósofo.

devir-negro do mundo

É assim, portanto, que este pensador do pós-colonialismo imprime sua explicação de mundo. Mbembe estudou na Sorbonne, em Paris, depois de passar por Berkeley, Yale e outras instituições acadêmicas conceituadas dos EUA. Hoje, leciona na Universidade de Witwatersrand em Johanesburgo, África do Sul. Seu livro "Crítica da Razão Negra", publicado em 2013 originalmente em francês (e traduzido para o português em 2014), embora seja considerado pelo próprio autor como "um ensaio", é um tratado cheio de meandros sobre racismo e capitalismo, cujas teses são construídas acadêmica e também poeticamente.

"Razão negra" – quem por ventura pensar em qualquer tipo de conceito que possa remeter a "black is beautiful", estará totalmente equivocado. O que Mbembe reconhece é um "enegrecimento do mundo" em uma época de "crespúsculo europeu". E o substantivo "negro", para ele, é compreendido como "toda a humanidade subalterna", incluindo as hordas de operários mal remunerados da indústria chinesa, bem como os milhões de refugiados, que perderam tudo, ou os migrantes europeus em busca de emprego, submetidos a condições precárias de trabalho. Mbembe analisa o desenvolvimento desta "cisão" e "codificação da vida social em normas, categorias e números". Para isso, ele volta mais de 500 anos na história. No centro de seu tratado recheado de teses, está o conceito do nègre – palavra usada em determinados idiomas hoje somente entre aspas, conotada negativamente e associada ao conceito de racismo.

Escravos na plantação de cana de açúcar em Cuba: pintura de Patricio de Landaluze (1874)

Os Condenados da Terra
Segundo Mbembe, o "Negro" é uma construção material e fantástica, que passou por três fases. A primeira delas, que foi do século 15 ao 19, se deu com a espoliação organizada através do tráfico transatlântico de escravos. Na segunda fase, os "seres cujos direitos foram usurpados" lutaram, a partir do fim do século 18 até o fim do apartheid há aproximadamente 20 anos, pela libertação e emancipação como "sujeitos completos do mundo vivo". A terceira fase é esta na qual vivemos, a "da globalização dos mercados, da privatização do mundo sob a égide do neoliberalismo" – uma fase que começou no início do século 21 e que "é dominada pelas indústrias do silício e pelas tecnologias digitais".

Em mais de 300 páginas, Mbembe comprova que, sem o "Negro", o capitalismo não teria podido se desenvolver desta forma como se desenvolveu e ainda se desenvolve, transformando continuamente as pessoas em mercadorias. Para isso, o teórico faz uso de citações que vão do viajante Alexis de Toqueville a Frantz Fanon, o mentor francês do pensamento descolonizador. "Poder predador, poder autoritário e poder polarizador, o capitalismo precisou sempre de subsídios raciais para explorar os recursos do planeta. Assim o foi e assim o é, ontem e hoje, ainda que atualmente ele esteja colonizando o seu próprio centro e que as perspectivas de um devir-negro do mundo nunca tenham sido tão evidentes".

Um livro para a sociedade mundial globalizada
Immanuel Kant estabeleceu em 1781, com sua obra principal de teoria do reconhecimento intitulada "Crítica da Razão Pura", os conceitos decisivos para o Iluminismo. A partir desta herança, Achilles Mbembe criou, com seu trabalho sobre o afropolitanismo, nada menos que os princípios teóricos de um "projeto de um mundo por vir", um mundo "liberto do peso da raça e dos ressentimentos".

O Prêmio Irmãos Scholl é concedido pela Federação Estadual da Baviera da Associação do Comércio Livreiro Alemão, junto com a prefeitura de Munique, dentro do Festival de Literatura que acontece na cidade. A premiação, no valor de 10 mil euros, leva o nome de Hans e Sophie Scholl, dois combatentes da resistência, mortos pelos nazistas. Em 2014, o prêmio foi entregue a Glenn Greenwald, parceiro de Snowden, por seu livro No Place To Hide, lançado no Brasil sob o título Sem lugar para se esconder: Edward Snowden, a NSA e a espionagem do governo americano.


sábado, 28 de novembro de 2015

Não podemos esquecer que 1984 começou assim

Ignacio Ramonet: em troca de suposta segurança, sociedade admite estado de vigilância maciço
Carlos del Castillo | Madri| Publico - 27/11/2015 - 06h00
Jornalista adverte que ‘sociedade não tomou consciência’ da ameaça que a vigilância maciça representa, apesar dos alertas de Assange e Snowden; 'hoje é mais seguro enviar carta pelo correio do que por e-mail, ninguém vigia carta', afirma
  

Ignacio Ramonet dirigiu durante 18 anos Le Monde Diplomatique, um dos órgãos de imprensa de maior prestígio no mundo e principal tribuna do movimento altermundialista. Enraizado na França, esse jornalista espanhol que atualmente dirige LeMondeDiplo, a versão espanhola da citada publicação mensal, analisa como o Governo do presidente francês François Hollande aprova um corte de liberdades e a prorrogação por três meses do estado de emergência, tentando fortalecer a capacidade de suas forças de segurança.

Para o autor de El Imperio de la Vigilancia, Ediciones Galileo (O Império da Vigilância), os governos “não podem garantir a segurança total”. No entanto, “o estado de emergência implica o abandono das liberdades democráticas e republicanas”, ao mesmo tempo que “hoje em dia há instrumentos para vigiar todos”. Uma vigilância que, além do mais, “é ineficaz”. É a tese de Ramonet em seu novo livro, transformado quase em premonição, pois foi publicado na quinta-feira, 12 de novembro. Um dia depois ocorreram os atentados jihadistas que levaram a “intimidada” sociedade francesa a não criticar as medidas propostas por Hollande. Para Ramonet, é um erro.

Publico: A sociedade francesa, que tradicionalmente defende seus direitos com tenacidade, aceitará ter menos liberdade em troca de mais segurança?
Ignacio Ramonet: Estamos no momento mais emotivo. Os atentados ocorreram na sexta-feira passada [13/11], e a partir daí foram sendo conhecidos os detalhes do que aconteceu, com os depoimentos de gente que viveu um inferno. Neste momento, o Estado pode pedir praticamente o que quiser à sociedade, e ela está em condições de lhe outorgar.
Agência Efe
 Chanceler alemã, Angela Merkel, presidente francês, François Hollande, e prefeita de Paris, Anne Hidalgo, participam de homenagem às vítimas dos atentados realizados pelo EI

Acabamos de ver como o presidente conseguiu uma união nacional em plena campanha para as eleições de 6 de dezembro. Conseguiu aprovar uma série de medidas, algumas delas propostas pela direita, em meio a um unanimismo geral. Quando ocorrem monstruosidades como a de Paris, as sociedades se intimidam. Quase não houve críticas à prorrogação do estado de emergência, que representa um abandono das liberdades democráticas e republicanas. No meu livro falo do que se passou depois do 11 de Setembro, quando os EUA promulgaram o Ato Patriótico, com essa mesma ideia, um contrato com os cidadãos: aceitem perder um pouco de vossas liberdades e eu lhes vou garantir maior segurança. O problema é que o Ato Patriótico ainda está em vigor.

A vigilância significa mais segurança?

Não, a vigilância maciça demonstrou que não é eficaz. A segurança total não existe, embora obviamente os governantes não possam dizer isso, sobretudo neste momento. O que a sociedade pede ao governante é segurança absoluta, e é o que ele promete. Mas a segurança absoluta não existe. E em particular diante de grupos terroristas.

Por sua vez, a vigilância maciça, sim, existe. Comprovamos isso depois das revelações de Edward Snowden. Atualmente há instrumentos para vigiarem todos. É uma espécie de coação: eu te dou segurança total, mas permita-me que te vigie totalmente. Porque apesar de eles poderem te vigiar, em troca não vão poder garantir segurança total.

As sociedades devem aceitar essa troca?

Claro que não! Esse é todo o sentido do livro que acabo de publicar. O problema é que neste momento é muito difícil emitir críticas porque, se você as faz, aparece como um aliado dos terroristas.
Qual é a alternativa à vigilância?
A vigilância é legítima. É perfeitamente legítimo que um governo vigie. Desde que o faça de maneira democrática, ou seja, por ordem de um juiz e com um controle democrático. Se um juiz determina que uma pessoa deve ser vigiada, é preciso vigiá-la. A questão não está em opor-se a toda vigilância, o problema é que o que se pratica agora é uma vigilância maciça e clandestina. O princípio é “vigiamos todo mundo para poder, no dia de amanhã, identificar aqueles que podem cometer um atentado”. Estamos perdendo liberdades sem que isso tenha sido debatido de modo suficiente, e discutindo a questão em um marco emocional muito específico.

A França promulgou em maio uma lei que permite a interceptação e a escuta de conversas por parte dos serviços secretos, sem que haja controle judicial. E isso foi feito em meio à emoção dos atentados contra o Charlie Hebdo. Somente requer a autorização do primeiro-ministro, Manuel Valls. Mas o primeiro-ministro não é um magistrado! Não é o poder judicial. É um político, é o poder executivo.

A ferramenta para a vigilância maciça é a internet, que permite uma inspeção exaustiva de todos os nossos movimentos e conversas. Pode-se dizer que já perdemos a liberdade na web?

Quando a internet surgiu era um ambiente de liberdade porque democratizava o acesso à informação. No entanto, hoje se centralizou e 99% das empresas que usam a internet recorrem quase inevitavelmente a uma das cinco grandes empresas digitais: Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft.

Mike Mozart / Flickr CC
 'Atualmente há instrumentos para vigiarem todos. É uma espécie de coação: eu te dou segurança total, mas permita-me que te vigie totalmente', diz Ramonet

Hoje, quando você utiliza a internet está entrando por esse gargalo que permite às autoridades terem acesso a todos os seus dados, primeiro porque essas empresas os passam ao Governo dos EUA, por lei, e segundo porque os Estados puseram em marcha sistemas próprios de vigilância. Hoje é muito mais seguro enviar uma carta pelo correio do que mandar um e-mail. Ninguém vigia a carta. Entretanto, qualquer comunicação digital deixa um rastro, os metadados. Desde o lugar onde você se comunica, com quem se comunica, quanto tempo durou esse intercâmbio, quando se deu... Toda uma série de dados com os quais se pode fazer uma espécie de galáxia de todos os teus contatos e conhecimentos, um verdadeiro atlas. Sem que você saiba o que está ali.

Embora sejam feitas gravações, escutar conversas é muito complicado porque é preciso colocar alguém ali para ouvi-las. No entanto, esses dados são coletados automaticamente, de forma maciça, de todos nós.

Os EUA têm acesso direto a esses dados graças às empresas que você citou. Considera que existe um neocolonialismo na internet? Que a web, que aparenta ser aberta e supranacional, é um território controlado pelos EUA?
Está controlada por essas empresas americanas. No livro, por exemplo, publico um relatório da CIA a respeito disso, “O Mundo em 2030”. Diz que daqui até 2030 um dos perigos para os EUA é precisamente que essas cinco empresas consigam ter maior poderio em termos de informação que o próprio governo dos EUA, que a própria administração do país. Não falamos de imperialismo norte-americano, mas do domínio de empresas que efetivamente são estadunidenses.


Dominamos a tecnologia ou a tecnologia nos domina?

O problema é que hoje já não podemos prescindir da tecnologia. Sem internet seria muito difícil fazer tudo o que fazemos. A pergunta é legítima. No dia de hoje, acredito que a resposta é que a tecnologia nos domina, não podemos desconectar-nos.

Em seu livro o senhor enaltece os “lançadores de alertas”. Chama de “heróis” pessoas como Julian Assange ou Edward Snowden. No entanto, os alertas que lançaram não tocaram a sociedade, muito pouca gente tomou consciência ou modificou seus costumes.
Exato. Essa é uma realidade. Para a maioria das pessoas pouco importa o estado de vigilância, não as incomoda. A prova: do que vive o Facebook? Dos dados que nós colocamos voluntariamente, não os arranca de nós.

O que coletivamente a sociedade diz com seu comportamento é que aquele que se incomoda de ser vigiado deve ter algo que quer esconder. E se quer esconder algo é porque, como diz Assange, é um dos quatro cavaleiros do infocalipse: ou é um traficante de drogas, ou é um pedófilo, ou é um sujeito que está fugindo do fisco ou é um terrorista. Se eu não sou nenhuma dessas quatro coisas, que me importa que me vigiem, se não tenho nada a ocultar? Essa é a problemática.

O problema é quando os governos começam a fazer uso dessa informação contra você. Estamos todos nus diante disso. É a distopia de 1984. Nós, europeus, vemos isso como algo muito distante, mas é algo que já se passa no Irã e na Arábia Saudita, com governos que perseguem os dissidentes.

Nós, jornalistas, estamos fracassando na hora de comunicar esse perigo?
Acredito que não porque, embora os jornalistas tenham, talvez, maior sensibilidade, é a sociedade que não toma consciência. A sociedade não valoriza suficientemente o heroísmo de gente como Assange. Quem são as pessoas mais perseguidas do mundo? Assange, Snowden, Chelsea Manning, condenada a 30 anos de prisão por ter revelado crimes que não teria de ocultar. Assange está há três anos trancado na embaixada do Equador em Londres e Snowden está exilado na Rússia. E o que fizeram que mereça tal perseguição? Demonstrar que somos vigiados. Denunciar um atentado contra nossas liberdades.
Publicado originalmente no site Publico


quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Destruição, crime, resistencia

Rompimentos de barragens de mineradoras têm se tornado mais graves nas últimas décadas, dizem especialistas
Rachel Costa | Londres - 18/11/2015 - 06h00
Avanço tecnológico da mineração não tem conseguido reduzir intensidade de eventos como o ocorrido em Mariana (MG); evitar próximo desastre só será possível com melhor regulamentação ambiental da atividade



Itália, 1985, África do Sul, 1994, e Hungria, 2010. Estas foram as rupturas de barragem de mineradoras mais mortíferas nos últimos 30 anos em países ocidentais. A primeira deixou 268 mortos, a segunda, 17, e a última, 10 vítimas fatais. Em Minas Gerais, o rompimento da barragem de Fundão no último dia 5 em Mariana já fez 11 mortos (quatro deles ainda sem identificação) e outras 12 pessoas seguem desaparecidas. Calcula-se em 62 milhões de metros cúbicos o volume de rejeitos lançados no meio ambiente. Grande parte dele atingindo o Rio Doce, um dos maiores do estado. A chegada ao rio tem causado uma segunda tragédia, com cidades sem água e moradores sem saber o que lhes espera. Governador Valadares, um dos principais municípios abastecido pelo rio, com 278 mil habitantes, decretou estado de calamidade pública desde a última terça-feira (10/11).

Falta água e faltam informações, o que torna difícil calcular a dimensão exata do desastre. A Vale e a BHP, as duas empresas multinacionais por trás da Samarco, companhia responsável pelos reservatórios, terão de desembolsar pelo menos 1 bilhão de reais neste que é um dos maiores desastres ambientais no Brasil e um dos maiores episódios de rompimento de barragem de rejeitos nos últimos 30 anos.

Antonio Cruz / Agência Brasil
Cenário da desolação em Bento Rodrigues, distrito de Mariana (MG), após rompimento da barragem e passagem da lama

E o grande problema é que o avanço tecnológico da mineração não tem conseguido reduzir a intensidade de eventos desse tipo. Muito pelo contrário, afirma o geofísico David Chambers, doCenter For Science In Public Participation (CSP2) [Centro para a Ciência em Participação Popular, em tradução livre], nos Estados Unidos. Chambers mantém desde 2009 uma base de dados com o registro de problemas em barragens de rejeitos em todo o mundo, cobrindo todo o último século. O que se pode aferir pelos números é que, se a quantidade de eventos diminuiu com o avançar da tecnologia, em contrapartida eles se tornaram muito mais graves e a previsão do cientista é que eles sigam ocorrendo em uma média de um grande desastre a cada ano. 

Problema internacional
Na lista mantida por Chambers, o último evento classificado como grave também aconteceu no Brasil: foi a ruptura na barragem de uma mina em Itabirito, em setembro de 2014, deixando três mortos. Entretanto, o pesquisador faz questão de enfatizar que tragédias envolvendo reservatórios não estão limitadas ao país. “Quando divulguei os dados da minha pesquisa, a resposta que recebi da indústria foi de que na América do Norte isso nunca aconteceria. Seis meses depois, houve o rompimento da barragem em Mount Polley, no Canadá”, diz Chambers.

Na tragédia canadense, a maior da história desse tipo no país, não houve mortos, mas 23 milhões de metros cúbicos de rejeitos foram lançados no ambiente, atingindo reservatórios de água da região. Em agosto de 2015, um ano depois do desastre, uma equipe da Anistia Internacionalvoltou à área e encontrou moradores ainda inseguros em relação à qualidade da água, aumento nos níveis dos lagos e muitas dúvidas em relação à possível contaminação dos peixes, uma vez que havia criadores de salmão na área.
Jeremy Board / Flickr CC
Ativistas protestam contra a empresa Imperial Metals em abril deste ano no Canadá
“No caso da Imperial Metals, que operava a mina de Mount Polley, eles são uma companhia muito menor, não são um conglomerado internacional”, avalia Chambers. No Canadá, a mina onde ocorreu o desastre voltou a operar neste ano, alegadamente para a companhia ajudar a cobrir os custos ambientais do acidente causado por ela própria. “É diferente do caso brasileiro. Espero que BHP e Vale cubram os custos operacionais envolvidos. Elas são as donas da Samarco”, fala o cientista, enfatizando que usar companhias locais para fazer a exploração é um procedimento comum entre multinacionais e, portanto, não pode ser usado como pretexto para isentá-las de culpa.

Falta de dados
Durante a apuração dessa reportagem, Opera Mundi consultou três cientistas que acompanham desastres provocados por empresas mineradoras. Para todos eles, a falta de dados oficiais é um problema para definir a dimensão exata da tragédia ocorrida em Minas. Até agora, dados sobre a contaminação da água foram divulgados por Governador Valadares e Baixo Guaiú, no Espírito Santo, mostrando altos índices de alumínio, magnésio e arsênio (este último apareceu nas provas capixabas).
Fred Loureiro / Secom ES
Lama da barragem do Fundão, rompida no dia 5 de novembro, atinge o rio Doce na cidade de Resplendor (MG)
Apesar de alarmados com os índices obtidos pelas provas, os cientistas acreditam que o método usado para a coleta não foi o mais adequado. “Neste momento, o que mais importa é testar a contaminação da água”, diz Chambers. “Pelos resultados dos testes já feitos, parece que eles foram realizados sem filtrar os sedimentos”, completa o geofísico, esclarecendo que o risco maior ocorre quando os metais estão dissolvidos na água.

Sem informações exatas, fica ainda mais complicado montar o intrincado quebra-cabeças do impacto ambiental provocado pelo vazamento. Magnésio em excesso na água, por exemplo, pode afetar o desenvolvimento mental das crianças, lembra a geoquímica Kendra Zamzow, também da CSP2. Zamzow acredita que o mais provável no caso brasileiro é que os metais estejam “presos” aos sedimentos, reduzindo o risco de contaminação. Entretanto, outro problema pode ocorrer, este relacionado ao depósito dos rejeitos: a formação de uma espécie de “cimento” no leito do rio, o que pode afetar a vida dos seres vivos presentes nas águas.

“Este caso da Samarco é muito maior que o de Mount Polley. No rompimento da barragem canadense, os rejeitos se espalharam por apenas oito quilômetros. Eles poderiam ter ido mais longe, mas foram parados pelo lago de criação de salmão”, diz a geoquímica Kendra Zamzow, também da CSP2.
 
A barragem rompida em Mariana. Foto: Corpo de Bombeiros MG

Danúbio vermelho
O caso brasileiro também é maior que o ocorrido na Hungria em 2010. “A dimensão é claramente maior que a do acidente húngaro, mas a atenção da mídia internacional é muito menor”, considera William Mayes, da Universidade de Hull, no Reino Unido. Mayes participou de um estudo para avaliar a recuperação do entorno após o desastre húngaro, no qual um milhão de metros quadrados de resíduos tóxicos de uma mina de bauxita vazaram, chegando a atingir o rio Danúbio, um dos principais da Europa.

A cor vermelha dos detritos húngaros pode fazer lembrar a que invadiu o rio Doce. A sua origem, porém, é bem diferente. Mayes explica que os rejeitos da mina europeia eram altamente alcalinos, salgados e continham metais como cromo e vanádio. Em Minas, Mayes acredita que o maior problema poderá estar nas altas concentrações de arsênio.

A análise liderada pelo cientista na Hungria mostrou uma boa recuperação do meio ambiente quatro anos após o vazamento. Estima-se que US$ 136 milhões foram gastos para a recuperação da área. “Mas é muito difícil comparar os dois casos”, fala Mayes, citando a diferença de volume e da composição dos rejeitos.

Evitar o próximo desastre, acredita Chambers, só será possível com uma melhor regulamentação ambiental da atividade mineradora. As esperanças do cientista são de que países recentemente afetados e onde a mineração é uma atividade econômica importante, como é o caso do Canadá ou do próprio Brasil, tomem a dianteira nesse processo. “Se um desses países cria esses parâmetros, os outros se verão obrigados a fazer o mesmo”, acredita o cientista.

As vidas perdidas não podem ser recuperadas, é certo. O estrago feito, porém, pode em muito ser contido e revertido, desde que bem calculado, e servir de exemplo para a criação de normas que evitem a repetição de tragédias como essa.