sábado, 29 de agosto de 2015

A literatura brasileira e os autores negros, como inserir e partilhar?

“O racismo extrapola a pura e simples ignorância”

 Este texto e esta maravilhosa entrevista são como fossem minhas palavras. Como eu gostaria de ter feito este milagre com minha vida. Mas está feito e é divino. Belo. Maravilhoso. 




Em novembro, Conceição Evaristo chega aos 69 anos. Uma vida repleta de batalhas, mas, sobretudo, plena em conquistas. Nascida em uma favela na periferia de  Belo Horizonte e radicada no Rio de Janeiro há 45 anos, a escritora e poeta   esteve em Salvador, no final de julho, para lançar seu quinto livro, a coletânea de contos Olhos D’Água, editada pela Pallas. 



Por Kátia Borges Do Uol
  
Um dos nomes mais representativos da literatura brasileira de autoria negra, Conceição     iniciou a carreira em 2003 com o romance Ponciá Vicêncio – sucesso de crítica e tema de dissertações e teses – e participa de diversas antologias, no Brasil e no exterior,  além de publicar nos Cadernos Negros desde os anos 1970, integrando o grupo literário Quilombhoje.

Mestre em literatura brasileira pela PUC-Rio e doutora em literatura comparada pela Universidade Federal Fluminense, atualmente é professora visitante da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Nesta entrevista, ela nos fala sobre  o seu trabalho, fincado na “escrevivência”, termo cunhado em seus livros  que se tornou conceito teórico;  sobre o racismo como uma questão política contemporânea, que se agrava a partir da globalização – em um jogo de poder e subalternização -; e sobre  a representação da mulher na mídia, sempre à mercê do machismo de homens negros e brancos.

No seu poema A noite não dorme nos olhos das mulheres, há um verso em que a senhora refere-se à “vigília atenta da memória”. Em que medida a literatura representa hoje essa vigília?
A minha literatura é apontada muitas vezes como memorialística, mas sempre digo que  ela não  é memorialística no plano individual e, sim, atenta a uma memória da população afro-brasileira e  à não compreensão da importância dos africanos e dos seus descendentes na construção da nação. Atenta ainda no sentido de ser uma memória que reivindica outra história e, no plano da literatura, reivindica um novo texto literário, no qual as personagens negras sejam protagonistas e não apenas coadjuvantes. Esse fazer literário é um fazer sempre de prontidão, um fazer sempre atento.

Quando, na opinião da senhora, será possível finalmente “relaxar a guarda”?
Penso que esta literatura só apaziguará no momento em que pudermos construir histórias em que as personagens negras sejam plenamente vitoriosas. Aí se criaria uma literatura talvez mais amena, não tão dolorosa como a nossa.
Ainda há forte resistência aos autores afro-brasileiros no mercado editorial?
Sim. Eu e outros autores negros estamos sempre publicando por editoras menores, e isso se reflete em dificuldades de promoção e distribuição dos nossos livros, criando um  círculo vicioso. E essa dificuldade que é enfrentada pela autoria negra reflete a invisibilidade que sofremos em outras atividades. Há poucos escritores negros, como há poucos políticos, poucos presidentes de multinacionais e  poucos galãs de TV.

Geralmente, os negros ocupam  papéis subalternizados na sociedade, inclusive na literatura, apesar de o maior escritor brasileiro, Machado de Assis, ter sido  um negro. Em determinadas instâncias sociais, há uma espécie de permissão ao negro, para que ele exerça uma cidadania lúdica, atuando  na dança, na música… Mas, mesmo assim,  note como há poucos bailarinos clássicos negros, poucos cantores líricos negros, poucos maestros negros. Mesmo nesses espaços,  há compartimentos.  A não visibilidade do escritor negro se insere nesse contexto.

Qual a alternativa então,  em uma sociedade tão compartimentalizada?
Penso que, em primeiro lugar, é preciso ter  atitude. Quando escrevi meu primeiro romance, ele ficou cerca de vinte anos guardado. O segundo ficou de oito a dez. Muitas vezes, é preciso encontrar caminhos alternativos de publicação. Eu comecei em editoras pequenas e só então  fui ganhando visibilidade. É preciso também, sem sombra de dúvidas, pensarmos políticas públicas de publicação e circulação que  contemplem livros de autoria negra.

E há ainda a mobilização dos coletivos, como o Quilombhoje. Desde os anos 70,  participo dos Cadernos Negros, que existem há 37 anos e são  uma publicação importante e coletiva. Esses caminhos alternativos, apesar de mais demorados que  os abertos pelas grandes editoras, tornam possível o surgimento desse trabalho.

A senhora é autora do conceito teórico de escrevivências, que utiliza em seu trabalho ficcional. Em que medida, em sua opinião, tal conceito aproxima-se ou distancia-se da chamada autoficção?
O interessante é  que, quando uso o termo escrevivência, em momento algum penso estar criando um conceito. Mas observo que, de fato, pesquisadores em literatura e também de outras áreas, como história e antropologia,  deram-me a autoria desse conceito. Na verdade, quem conceitua é muito mais o  pesquisador. Eu, se me fosse pedido para conceituar, não saberia, embora entenda o que seja e tenha consciência plena daquilo que faço.
Em relação à autoficção, creio que sim, que a escrevivência se aproxima da autoficção. Mas há uma diferença e gosto sempre de frisar isso. Escrevo ficção como se estivesse escrevendo sobre situações reais. Em Becos da Memória,  digo que nada  é verdade, mas nada é mentira. Não é a minha história pessoal, não é uma autobiografia, embora a história da personagem se aproxime em alguns aspectos da minha vida. São ficções da memória, vivências coletivas que se transformam em literatura. O substrato é a realidade.
O escritor angolano Pepetela diz que só escreve ficção quem conhece a realidade, quem tem a vivência, quem tem a memória, no plano pessoal e está em sintonia, em cumplicidade, com o coletivo. A minha experiência como mulher pobre, como mulher negra, me autoriza a escrever.

Quando crio um texto em que falo do outro como alteridade é de mim, na verdade, que estou falando, porque eu experimento aquele lugar de alteridade. Toda a minha escrita, seja ficção, seja no âmbito teórico e acadêmico, é contaminada pela minha condição de mulher negra na sociedade brasileira. É uma história compartilhada por muitas e muitas mulheres. Da África à diáspora.

Mas na academia, e a senhora integra o corpo docente da UFMG como professora visitante, há o pensamento dominante de que  os pesquisadores devem apagar o lugar de fala, não?
É verdade. Mas eu tenho certeza de que nunca apaguei meu lugar de fala e não quero apagar  o meu lugar de fala. Em minha pesquisa de doutorado, quando fui trabalhar com textos de Agostinho Neto, e outros autores afro-brasileiros, essa não foi uma escolha inocente.

Por exemplo, eu nunca faria uma pesquisa, embora até ache interessante quem faz, sobre as funções do pronome ‘que’ na língua portuguesa, entende, não é algo que me atraia, que me seduza. O Edward Said, creio que em Orientalismos: o Oriente como invenção do Ocidente, fala que a grande motivação dele em estudar as questões orientais partiu da condição dele como sujeito oriental. Penso que a neutralidade do pesquisador seja uma falácia. E eu me sinto muito à vontade para dizer isso, porque acredito que não existe lugar neutro e, quando se trata de literatura, menos ainda.

Persiste na representação da mulher negra na mídia, além do preconceito, o machismo, que é um dos temas que perpassam seus contos em Insubmissas lágrimas de mulheres. Como transformar o olhar sobre a mulher negra?
Penso que a representação da mulher negra na literatura e na mídia só irá mudar quando pudermos criar nossa própria representação. Nesse livro que você citou, vemos  mulheres submetidas à tirania de brancos e negros. Elas lutam também contra o machismo do homem negro, embora esta não seja sua primeira luta.

O homem negro na sociedade brasileira não tem as mesmas benesses que o homem branco tem, ele é fragilizado e, frequentemente, é alvo da violência.

Mas, muitas vezes, como homem, acaba submetendo as mulheres ao mesmo machismo. Mas acredito em mudanças, mesmo quando elas acontecem lentamente, e a educação – e digo isso  não apenas no plano puramente educacional – tem um papel fundamental nesse processo de transformação.
No conjunto, penso que  temos uma responsabilidade enorme, pois esta  é uma luta que se dá no campo simbólico e, portanto, ela é  muito mais difícil. Trata-se de lidar com  representações da mulher negra arraigadas no imaginário coletivo.

A senhora falou sobre a importância da educação, o racismo seria uma questão essencialmente de ignorância?
Também, mas esta é, sobretudo, uma questão política. Se reduzimos o racismo apenas à ignorância, podemos imaginar que apenas quem não teve escolarização suficiente, os não letrados, são racistas. E, no entanto, o que vemos é a academia sendo racista, os políticos, os intelectuais sendo racistas. É por isso que  afirmo que essa é uma questão essencialmente política. Se você observar bem, o racismo é criado muito com o intuito de subalternizar o outro. Vivemos em um mundo globalizado, no qual o capital é a força que substitui o diálogo. Nesse universo,  subalternizar o outro é uma forma de exploração, uma forma de impor o poder em um jogo social. Então, penso que o racismo extrapola a pura e simples ignorância.

O que a senhora pensa, por exemplo, da revisão dos livros de Monteiro Lobato e das discussões sobre Machado de Assis?
Há um trabalho muito interessante, de Eduardo de Assis Duarte, da UFMG, que está em segunda edição pela Pallas, Machado de Assis  Afrodescendente. E, antes dele, o Ianni, Octavio Ianni, escreveu um artigo muito interessante, chamado Literatura e consciência, ainda em 1988, mostrando a negritude implícita de Machado de Assis.

Como toda a formação dele foi marcada por filósofos europeus e pelo que a intelectualidade europeia produzia na época, há uma tendência geral da crítica em dizer que a ironia dele vem daí.

Mas Ianni contesta e diz que não, que a ironia ferina de Machado de Assis tem origem na sabedoria popular e  pressupõe o povo olhando as classes privilegiadas. Nesse sentido, é interessante pensar Machado tendo essa percepção de seu espaço, enquanto sujeito negro, numa época em que não era permitido se pronunciar,  como podemos fazer hoje.

Penso que o texto de Machado permite essa leitura, a de um homem negro que tenta se posicionar como tal, mas ainda com muita sutileza, devido às pressões que o cercam. Quanto a Monteiro Lobato, bem, eu fui criada lendo Monteiro Lobato, era a leitura que se tinha naquela época… Creio que ele poderia ter sido um homem à frente do seu tempo, até para pensar e propor um nacionalismo brasileiro, mas não há como negar estereótipos de negros em sua literatura. Basta observar os diálogos de Emília com Tia Anastácia.

Estão ali todos os preconceitos da época, como ainda hoje encontramos em outros autores. Não é só Monteiro Lobato, é a literatura brasileira como um todo, inclusive a literatura brasileira contemporânea, que dissemina estereótipos tanto sobre  a figura do negro quanto sobre a figura do índio. Este é um imaginário que atravessa o tempo. O nacionalismo de Monteiro Lobato exclui e, quando não exclui, não retrata dignamente os negros.

A senhora veio a Salvador lançar seu novo livro. Em que medida sua literatura vai na contramão dos estereótipos? 
Meu novo livro, Olhos D’Água, tenta quebrar estereótipos sobre as famílias negras.  A protagonista é uma mulher que inventa uma brincadeira amorosa com suas filhas, na qual a ternura é traduzida entre elas pela cumplicidade do olhar. Pelo jogo do olhar, elas conversam e se comunicam. Muitas vezes, a dureza da vida impede, mas é fundamental pensar que, além de suprir as necessidades materiais, precisamos nos suprir de ternuras. Nesse sentido, nos ver refletidos no olhar do outro é o que nos mantém vivos.




terça-feira, 11 de agosto de 2015

Um pão de trigo para a humanidade

Atração da Flip 2015, escritor queniano Ngugi wa Thiong’o fala sobre dilemas da África





 GELEDES, GELEDES, vocês são demais...
Publicado há 3 meses - em 3 de maio de 2015 » Atualizado às 12:16 
Categoria » 
Patrimônio Cultural







Em entrevista exclusiva, um dos 

principais autores do continente 

defende a preservação das línguas 

locais

POR GUILHERME FREITAS, do O Globo 




Na década de 1960, enquanto a África vivia o colapso dos regimes coloniais europeus, uma nova geração de escritores africanos despontou no cenário mundial com obras que refletiam sobre as lutas por independência no continente. Eram jovens intelectuais recém-saídos da universidade, que se dividiam entre a participação ativa na campanha pela libertação de seus países, muitas vezes pegando em armas, e a criação de uma literatura africana moderna, ancorada no diálogo entre as tradições locais e a herança ocidental.

Ngugi wa Thiong’o entrou na linha de frente desse movimento em 1967, quando publicou seu terceiro romance, “Um grão de trigo”. Lançado apenas quatro anos depois da independência do Quênia, que deixou de ser colônia britânica em 1963, o livro era ao mesmo tempo uma afirmação da cultura queniana e uma meditação sobre as contradições e incertezas do novo momento do país. Um dos clássicos da literatura africana do século XX, “Um grão de trigo” será publicado no Brasil pela primeira vez em junho, pela Alfaguara, em tradução de Roberto Grey. Ngugi será um dos destaques da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), que acontece entre 1 e 5 de julho, onde lançará também “Sonhos em tempo de guerra” (Biblioteca Azul), primeiro volume de sua trilogia de memórias.

Nascido em 1938, no vilarejo de Kamirithu, região central do Quênia, Ngugi pertence à etnia gikuyu, a mais populosa do país. Foi criado pelas quatro esposas de seu pai, numa casa onde o ritual noturno de contar histórias em torno do fogo era parte sagrada da rotina. Sua infância e adolescência foram atravessadas por conflitos históricos. Primeiro, a Segunda Guerra Mundial, na qual quenianos foram forçados a lutar ao lado dos colonizadores britânicos. Depois, nos anos 1950, a rebelião Mau Mau, quando uma guerrilha anticolonial foi massacrada, mas abriu caminho para a independência conquistada na década seguinte.

Escrito na Inglaterra, onde Ngugi estudou literatura nos anos 1960, “Um grão de trigo” é ambientado nos quatro dias anteriores à declaração de independência do Quênia, em 12 de dezembro de 1963, mas repassa a longa história de choques com o poder colonial. O protagonista do livro é Mugo, ex-prisioneiro político considerado em sua aldeia um herói da libertação, mas que carrega a culpa por uma traição cometida num momento decisivo de sua vida.

Depois do sucesso do romance, escrito em inglês, o autor, batizado como James Ngugi, adotou o nome atual e passou a escrever somente no idioma gikuyu. Em 1977, no governo do presidente Jomo Kenyatta, líder nacionalista exaltado em “Um grão de trigo”, Ngugi foi preso por causa das críticas sociais de seus romances e peças em gikuyu. Libertado um ano depois, continuou a ser perseguido e exilou-se nos Estados Unidos, onde vive até hoje, dando aulas na Universidade da Califórnia-Irvine. Em 2004, quando voltou ao Quênia pela primeira vez depois de 22 anos, sua casa foi invadida por três ladrões, que o agrediram e estupraram sua mulher. Os invasores foram presos e condenados à morte.
Em entrevista exclusiva por telefone, da Califórnia, Ngugi fala sobre sua obra e a conturbada relação com o país natal. Aos 77 anos, um dos maiores escritores africanos vivos, sempre cotado para o Nobel, avalia os dilemas enfrentados pela África desde as independências, diz admirar Jorge Amado e defende a preservação das culturas locais como alternativa para o futuro do continente.

Quais são suas memórias da infância no Quênia durante a Segunda Guerra Mundial?
Como o Quênia era uma colônia britânica, muitos quenianos tiveram que lutar ao lado de seus dominadores. Minhas memórias mais antigas são de comboios carregando soldados armados. Também lembro de prisioneiros de guerra italianos, que eram mandados para o Quênia depois de serem detidos na região da Somália disputada por britânicos e italianos. Eles vinham ao nosso vilarejo nos intervalos do trabalho forçado na construção de estradas. Tentavam comprar ovos e seduzir nossas mulheres.

Qual era o papel das histórias na sua família e na cultura gikuyu?
Cresci numa casa com quatro mães e um pai. Ele estava ausente da nossa vida a maior parte do tempo, mas as mães estavam sempre presentes. Eram elas que nos davam comida, roupas e histórias. Essas histórias que elas contavam eram muito importantes para nós. As gerações atuais podem não ter dimensão disso, por causa da onipresença da TV, do rádio e da internet, mas naquela época o ato de contar histórias era uma atividade diária. À noite, antes ou depois do jantar, as pessoas contavam histórias, desde narrativas ficcionais até relatos de encontros do dia e acontecimentos políticos ou simplesmente boatos que circulavam pelo país. Eram como rituais em que sentávamos ao redor do fogo para ouvir as histórias do dia.

Como muitas famílias quenianas, a sua se viu envolvida na rebelião anticolonial Mau Mau, nos anos 1950. Um de seus irmãos se juntou aos guerrilheiros e outro foi assassinado. Como enfrentaram esse período?
Mal acabou a Segunda Guerra, não fazia nem cinco anos que não víamos mais os soldados, começou a guerra por nossa libertação. É importante lembrar que o nome dos Mau Mau era Exército Terra e Liberdade. Foram os britânicos que criaram essa onomatopeia tola para que o movimento parecesse mambembe e sem foco. Mas o nome era claro: Exército Terra e Liberdade. Muitas famílias quenianas se envolveram na guerra. A maioria ficou ao lado dos guerrilheiros Mau Mau, mas algumas atuaram como força auxiliar da presença militar britânica. Foi declarado um estado de emergência no país entre 1952 e 1960, que instaurava a lei marcial no lugar da lei colonial “normal” — que já era uma espécie de lei marcial, é claro. Toda a população do país foi atingida pelas operações militares, de uma forma ou de outra. Famílias se partiram ao meio, casas foram destruídas, houve um imenso êxodo humano, comparável às maiores tragédias da História.

“Um grão de trigo” se passa no momento da independência, em 1963, mas também recapitula a rebelião Mau Mau e toda a história do colonialismo no Quênia. Um aspecto marcante é a ambiguidade dos personagens: Mugo, o protagonista, é visto como um herói nacionalista em sua aldeia, mas se revela um traidor. Críticos relacionaram esse traço do romance às contradições das independências africanas. Como você avalia a forma como os quenianos lidaram com a independência?
Como romancista, é claro que não me interesso por situações em preto e branco, tento ver as nuances das personalidades e da História. “Um grão de trigo” expressava meus sentimentos na época, quatro anos depois da independência, quando eu sentia que muitas metas da luta pela libertação estavam sendo deixadas de lado pelo novo governo pós-colonial. O romance investigava aquele momento, quando não tínhamos uma ideia clara do que estava errado, mas sentíamos que algo não ia bem. Daí a ambiguidade, talvez.

Quais eram suas maiores preocupações com o Quênia na época?
A forma como o país tratava os guerrilheiros que lutaram pela nossa liberdade, por exemplo. Eles realizaram um grande sacrifício, mas estavam sendo relegados a segundo plano. O que eu estava tentando dizer era: o povo do Quênia, e da África, foi a base do sucesso das lutas anticoloniais e nossa independência só terá sentido se conservarmos a unidade entre os líderes e os povos. Não derrotamos os poderes coloniais porque tínhamos mais armas, e sim porque tínhamos nosso povo. E ainda temos. Precisamos de líderes que saibam que seu poder vem do povo.

Nos anos 1960, muitos escritores africanos lidavam com os temas do colonialismo e da independência, como Wole Soyinka e Chinua Achebe, na Nigéria, ou José Craveirinha, em Moçambique. Qual é o legado da sua geração de escritores para a África?
Soyinka, Achebe, eu e vários outros éramos jovens nascidos sob o colonialismo e estávamos amadurecendo junto com nossos países. Éramos otimistas, não só em nosso discurso, mas também na energia com que nos entregávamos ao trabalho. Nossa energia refletia a energia da luta anticolonial em toda a África, mesmo quando criticávamos o que acontecia. Isso ajudou a criar um sentido de “nova África”, à qual nós demos voz. Nossa geração veio de uma tradição literária que ainda era muito ocidentalizada e ajudamos a formar uma geração cuja tradição literária é o nosso trabalho. Eles podem construir a partir do que nós construímos. Mas há um lado negativo nisso. Quase todos escrevíamos em inglês, francês ou português, então ajudamos a criar uma tradição literária africana na língua dos colonizadores, negligenciando nossas próprias línguas africanas.

Nos anos 1970, você mudou seu nome de James Ngugi para Ngugi wa Thiong’o e passou a escrever no idioma gikuyu. Como chegou a essa decisão?
Uma das contradições da condição pós-colonial é a descrença dos africanos quanto às nacionalidades nativas. Ironicamente, tínhamos mais fé em nós mesmos quando estávamos lutando pela independência. Depois, a classe média africana passou a ter mais fé no que vinha de fora, incluindo os idiomas. Minha posição é a seguinte: podemos fazer parte do mundo sem abandonar nossas bases. Não precisamos abrir mão de nossos idiomas para nos integrar ao resto do mundo. Devia ser justamente o contrário: nossa condição para fazer parte do mundo deveria ser a fidelidade às nossas bases, incluindo nossos idiomas.
Você foi preso no Quênia em 1977, por escrever romances e peças no idioma gikuyu. Por que isso era visto como ameaça pelo governo?
Se você quer se comunicar com as pessoas, tem que falar a língua delas. No fundo, o governo não queria que eu escrevesse em gikuyu por medo de que isso estimulasse as pessoas a tomarem consciência de si. Se você sabe todas as línguas do mundo, menos a sua, isso é escravidão. Mas se sabe sua língua materna e aprende outras, isso é poder.

Em “Um grão de trigo” e outros livros, você tem uma diálogo criativo com autores ocidentais, especialmente Joseph Conrad. Qual foi o papel da literatura ocidental na sua formação como escritor?
Falamos sobre minha educação noturna na casa das minhas mães e as histórias que elas contavam. Como você pode imaginar, essa educação era bem diferente da que tive na escola. Os livros que nos davam em sala de aula eram todos em inglês, fomos educados em inglês. Mais tarde, quando fui estudar em Londres, a literatura inglesa foi parte da minha formação como escritor e como indivíduo. Não posso me livrar da literatura ocidental, nem quero me livrar dela. Mas sei que isso também é parte do colonialismo. Por isso, é importante olhar para outros lugares. Minha libertação mental não veio só com a valorização dos idiomas africanos, veio também com a descoberta de outras literaturas que não a europeia. Lembro até hoje do que senti lendo Jorge Amado. Não falo português, mas mesmo na tradução inglesa tive a sensação de vivenciar o dia a dia descrito nos livros dele.

Quais são os maiores desafios ainda enfrentados pelo Quênia e outros países do continente, décadas depois das independências?
É fundamental não subestimar a importância das independências africanas, mesmo com seus problemas. Mas elas nem sempre significaram a liberdade de um país ou sua real independência econômica. Até hoje, quem extrai o ouro, o diamante e o cobre da África? Quem lucra com isso? Os recursos africanos ainda são controlados por corporações estrangeiras. Um povo só pode dizer que é livre se controla sua economia, sua política e sua cultura. A descolonização só estará completa quando tivermos relações baseadas na troca, não na exploração.

Como é sua relação com o Quênia hoje, depois da prisão, do exílio e do ataque contra você e sua mulher em 2004?
O Quênia hoje tem um clima político melhor. Já não matam dissidentes, nem prendem por traição. A insegurança continua e a economia é instável, mas estou otimista. Hoje sinto que posso ir ao Quênia, já voltei outras vezes desde 2004 e vou de novo em junho. O país está mais aberto.



Você acompanha a nova geração de escritores africanos que começa a ficar mais conhecida no mundo, como a nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, o queniano Binyavanga Wainaina e o etíope Dinaw Mengestu? Como ela se compara à sua geração?
É muito animador comparar minha geração com a atual. Na minha época, dava para contar os escritores africanos nos dedos. Hoje são vários — eu mesmo tenho três filhos e uma filha que já publicaram livros (risos). Essa nova geração explora áreas diversas com muita coragem, eles são mais viajados, conhecem o mundo. Minha preocupação é que não vejo muitos deles abraçando línguas africanas. Fico feliz por ver autores africanos fazendo sucesso internacional, mas sinto que as línguas africanas podem morrer se não conseguirmos que os jovens se interessem por elas. Mas como vamos fazer isso se os governos africanos não têm qualquer política para as línguas do continente, e na verdade são até contra elas? Eu gostaria de ver um líder africano falando com seu povo na língua local. Gostaria de ver línguas africanas no currículo das escolas. Gostaria de ver mais livros publicados em línguas africanas, mais traduções entre línguas africanas e de idiomas estrangeiros para línguas africanas. Gostaria de ler Jorge Amado em gikuyu. Por que não?


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