domingo, 27 de dezembro de 2015

Sala de Machado de Assis

Primeiro presidente negro na ABL desde Machado de Assis

Publicado há 1 dia - em 9 de dezembro de 2015 » Atualizado às 18:11 
Categoria » 
Patrimônio Cultural













Desmitificando a idéia de negro submisso




Por Martiniano Silva Do DM

Li no jornal Folha de São Paulo (4 de dezembro 2015, Poder A15), informação de Luiza Franco segundo a qual a Academia Brasileira de Letras elegeu seu primeiro presidente negro desde Machado de Assis. Trata-se do professor e escritor carioca Domício Proença Filho, com mandato até o fim de 2016. Quinto ocupante da cadeira 28, entrou na ABL em 2006, sucedendo Oscar Dias Corrêa. Escreveu 65 obras, incluindo livros didáticos e romances; sucederá o diplomata Geraldo Holanda Cavalcanti.

Como sabemos e informa Luiza Franco, Machado de Assis “não costumava falar sobre a questão da raça e ocupou a cadeira de 1897 a 1908”. Pouco importando o modo de proceder do maior escritor brasileiro, Machado de Assis, só agora, em mais de 100 anos de história, temos Proença como o segundo presidente negro da ABL! Seria por que, a vida toda, “se debruçou sobre a questão do negro na literatura e no Brasil?” Seria um gênio? De todo modo, conforme escreve Luiza Franco, “na presidência da casa, não fará do assunto uma bandeira”. Questão racial nunca foi objeto da preocupação dessas instituições. Proença já avisou:
“A Academia não discutirá isso. A questão racial nunca foi sequer aventada aqui, seja contra ou a favor. Eu não fui cota. Academia não me elegeu por eu ser um negro escritor”, diz.

Seja como for, o certo é que a posição assumida por Domício Proença Filho, não é muito diferente da que assumiu o velho bruxo de “Cosme Velho”, Machado de Assis, a despeito de ser um intelectual dos mais privilegiados e inteligentes das Américas e do mundo. Assim como Proença, o ilustre autor de Dom Casmurro, de tão influenciado pelo mascarado racismo “a brasileira”, “fugiu” do tema relativo às suas origens africanas. Sobre isso, aliás, foi severamente criticado por nada menos que a glória que é Mário de Andrade, ao escrever:

“Machado de Assis não profetizou nada, não combateu nada, não ultrapassou nenhum limite infecundo. Viveu moral e espiritualmente escanchado na burguesice do seu funcionarismo garantido e muito honesto, afastando-se os perigos visíveis. Mas as obras valem mais que os homens! E se o Mestre não pode ser um protótipo do homem brasileiro, a obra dele nos dá a confiança do nosso mestiçamento e vaia os absolutistas raciais com o mesmo rijo apito com que Humanistas vaiaram o setentarismo das filosofias de contemplação (Andrade, 1972, pp. 108 e 109).

Embora reconheça os irrefutáveis méritos literários de Machado de Assis, inclusive admitindo que “as obras valem mais que os homens”, Mário de Andrade, “sem meias palavras”, mostra que a estranha posição assumida pelo velho bruxo com relação ao tema enfocado tem dimensão superior à dos meros dúbios e ambíguos, ainda existentes, parece-nos já vivida e acentuada nas “dúvidas da infância” de Machado de Assis, período onde, humilhado e fugindo do negro como o diabo da cruz, teria tido vergonha das próprias origens de ser moleque gago, sifilítico, epilético, sem rumo, vagabundo, posicionamento dotado de preconceito racial ainda bem vivo na maior parcela da sociedade brasileira com relação aos vagabundos de hoje em dia, chamados “meninos de rua”, “desocupados” e marginais, em maioria afro-brasileiros.

No particular abordado o emérito Dante Moreira Leite, refutando tese conservadora de Gilberto Freyre, segundo a qual “o homem de talento sempre pode elevar-se às mais elevadas posições”, como ocorreria com relação a machado de Assis e Gonçalves Dias, por exemplo, é taxativo em afirmar que Machado de Assis, para ser o que é, no sagrado ofício de escrever, escondeu sua aparência de mulato: “Machado de Assis de várias maneiras procurou esconder sua aparência de mulato, enquanto Gonçalves Dias não conseguiu, pelo fato de ser mestiço, casar-se com moça de classe mais alta” (Leite, 2002, p. 371).

E com relação ao segundo presidente negro, Domício Proença Filho, na ABL? O fato de estarmos em pleno século 21, reduziria o racismo e o sofrimento desse novo homem negro no elevado status de presidente? Consoante afirmou, não vai tratar do assunto.  Não vou opinar sobre sua obra, por exemplo, “A trajetória do negro na literatura brasileira”, que enriquece o conteúdo e bibliografia do Racismo à brasileira: raízes históricas, em 4ª edição (2009).  Assim, o que ocorre com os ilustres membros da ABL com relação ao preconceito social e racial, é o mesmo que acontece em outras instituições culturais congêneres, onde o assunto, além de ser dissimulado, pra não dizer escondido, não vem sendo lembrado. Não é objeto de discussão, debates, abordagens, polêmicas. Mas o pior é o que ocorre no ambiente universitário brasileiro, onde, com as devidas exceções existentes, está explicitado e comprovado pelo que chamo “racismo acadêmico ou universitário”, justificando um dos capítulos do livro acima citado, desde sua primeira edição em 1985. Ali ousei mostrar e desmistificar a velha ideia de negro submisso, que não se importava com sua situação de cativo, devendo ser por isso, certamente, que virou mero objeto de pesquisa acadêmica.
(Martiniano J. Silva, escritor, advogado, membro do Movimento Negro Unificado (MNU), da Academia Goiana de Letras e Mineirense de Letras e Artes, IHG-GO, UBE-GO, mestre em História Social pela UFG, professor universitário, articulista do DM –martinianojsilva@yahoo.com.br)


domingo, 20 de dezembro de 2015

Entre estrelas!

Conheça a mulher que levou a língua portuguesa até o espaço interestelar
Janet Sternberg é norte-americana, mas foi escolhida para gravar a mensagem em português que viaja nas missões Voyager para os lugares mais distantes do universo. E garante: não tem medo de extraterrestres





/12/2015 - 14H12/ ATUALIZADO 14H1212 / POR ANDRÉ JORGE DE OLIVEIRA
JANET STERNBERG: A NORTE-AMERICANA É PROFESSORA, DOUTORA E ESPECIALISTA EM MÍDIA. QUANDO JOVEM, MOROU NO RIO DE JANEIRO, ONDE APRENDEU A FALAR PORTUGUÊS COMO UMA NATIVA (FOTO: REVISTA GALILEU)


Apesar de Janet Sternberg não ser nativa do Brasil nem de nenhum outro país colonizado por Portugal, foi a voz dela que levou a língua portuguesa até o espaço interestelar. Em 1977, Janet foi convidada por uma equipe chefiada pelo astrônomo Carl Sagan para pensar em uma saudação que seria enviada para fora do Sistema Solar. Gravada em um disco de cobre banhado a ouro, a mensagem viajaria eternamente pelo cosmos com as duas naves Voyager, lançadas pela Nasa em 1977. É como um náufrago que manda um bilhete dentro de uma garrafa pelos oceanos. A linguista deveria escolher uma frase que representasse toda a comunidade lusófona do planeta Terra, estimada em cerca de 250 milhões de pessoas espalhadas por nove países. Diante de uma tarefa tão ingrata, Janet decidiu pensar em algo que simbolizasse o lugar que a viu crescer — o Brasil. Para ela, os dizeres que melhor nos representavam eram: “Paz e felicidade a todos.”
Nascida em Nova York, ainda criança mudou-se com a família para o Rio de Janeiro, onde aprendeu a falar fluentemente o português. Voltou aos Estados Unidos com 13 anos e, em 1975, ingressou no Departamento de Línguas da Universidade Cornell para cursar pós-graduação. Foi ali que, dois anos mais tarde, Sagan e sua equipe recrutaram às pressas cerca de 40 pesquisadores para gravar 55 saudações em línguas diferentes, arcaicas e modernas, para compor a cápsula do tempo cósmica batizada de Golden Record. Em entrevista a GALILEU, Janet Sternberg conta como foi o processo de recrutamento, o dia da gravação, relata como era sua relação com as outras “vozes” do projeto e também com Carl Sagan, que na época era um “João Ninguém”. Ela explica ainda o porquê da frase “Paz e felicidade a todos”, além de descartar a possibilidade de uma civilização alienígena chegar a interceptar as naves e os discos. A seguir, os principais trechos do bate-papo.

A senhora é norte-americana. Como aprendeu a falar português?
Ninguém da minha família é do Brasil, todo mundo é de Nova York. Por motivos pessoais, meu pai resolveu levar a família para morar no Rio de Janeiro. Foi assim que aprendi a falar bem o português — inclusive o sotaque, porque peguei quando criança. Voltamos para os Estados Unidos quando eu tinha 13 anos. Foi só muitos anos depois que comecei a estudar linguística e reativei meu português, já na Universidade Cornell. Estava ensinando português e estudando linguística das línguas românicas — português, espanhol, francês. Foi nessa época que fizeram essas gravações.
A senhora tomou conhecimento do projeto da Golden Record quando estava em Cornell. Pode contar como soube e de onde surgiu seu interesse em participar?
Era um departamento de línguas muito grande em comparação com o de outras universidades, ensinava algo como 20 ou 25 línguas diferentes, inclusive as exóticas. As outras instituições talvez ensinassem cinco ou dez línguas. E, por acaso, o astrônomo Carl Sagan era o chefe da equipe do projeto Golden Record, que é apenas uma parte da missão das Voyagers. Aliás, a mensagem foi uma ideia que acrescentaram ao projeto. Um dos cientistas falou: “Vamos, então, fazer uma espécie de mensagem na garrafa”. E foi aí que a equipe de Carl Sagan começou a trabalhar no Golden Record, em 1977. Há um livro chamado Murmurs of Earth (Murmúrios da Terra, em tradução livre) no qual a equipe conta essa história. Eles estavam com pressa para fazer essa gravação, e decidiram mandar imagens, músicas, falas de personalidades famosas. Então resolveram convidar pessoas que representassem tantas línguas quantas fossem possíveis. Pessoas normais, que não fossem famosas nem celebridades, simplesmente para gravar saudações ao universo.
Como as pessoas foram recrutadas para o projeto?
Era 1977, não havia internet, mal tinha computador. Pessoas normais usavam o correio e telefone. A equipe de Sagan ligou para o departamento de línguas, e a secretária pegou uma lista de todo mundo que ensinava todas as línguas. Escolheram aqueles cuja pronúncia fosse melhor, o que chamamos na linguística de nativo. Eles me convidaram para representar o português — e também chamaram uma série de outras pessoas. Não são 55 pessoas, são 55 mensagens em línguas diferentes. Com relação às línguas clássicas, por exemplo, acho que algumas pessoas fizeram mais de uma gravação. Em uma certa tarde, recebi um telefonema explicando sobre a existência de um projeto de Carl Sagan, um professor de astronomia que, naquela época, era um “João Ninguém”. Eles queriam que eu aparecesse em tal lugar às 9 da manhã para realizar um projeto especial. No dia seguinte, fui ao local e dei de cara com muitos colegas e com vários outros que eu não conhecia.

E a senhora já sabia da importância da missão?
Ninguém sabia o que era. Aí falaram que estávamos lá cada um representando a sua língua. A língua não, o país. Eu estava representando todos os lusófonos, não só o Brasil como também Portugal, Macau, Angola, Moçambique, Goa. Disseram que estávamos lá para gravar saudações para o universo. Devíamos ser breves, gravar um cumprimento do planeta Terra. Quando saímos da cabine, nos pediram para escrever o que falamos e a tradução — então, obviamente, não podia falar besteira. É importante lembrar que, naquele tempo, não se sabia nem se iriam completar os discos, nem se iriam completar as Voyagers, nem se haveria o lançamento. Hoje, mais de 30 anos depois, olhamos para a missão e dizemos “uau, as Voyagers duraram esse tempo todo sem nenhuma manutenção, sem mão humana”. Quantas máquinas conhecemos no mundo que funcionam depois de tantos anos sem nenhuma limpezinha, óleo, nada?
Qual é a reação das pessoas quando a senhora diz que participou do projeto?
Muito raramente vejo pessoas que acham que essa missão foi um erro, que estamos entregando o nosso lugar, que agora os extraterrestres vêm atacar a gente. Isso não me parece razoável. Penso que seja mais uma questão de que, realmente, jogamos uma garrafa no mar com uma mensagem. Sou dos anos 1970, da época da Guerra do Vietnã nos Estados Unidos, então, para mim, a ideia de paz e felicidade não é só uma coisa do português: faz parte também da minha época e da minha história pessoal. O que é interessante é que cada uma das mensagens era diferente das outras. Algumas pessoas se confundem e pensam que todas diziam “Paz e felicidade a todos”, mas não. A mulher que falou um dos vários dialetos chineses disse: “Você já comeu arroz hoje?”. Não é porque ela quis falar do arroz, e sim porque esse é o cumprimento típico na China, como o “Como vai você?”.
A senhora acredita que existe uma possibilidade de alienígenas interceptarem as Voyagers e ouvirem o disco?
Nunca me preocupei com os extraterrestres. Tem gente que me pergunta se eu não fico aflita pensando que os extraterrestres vão vir me procurar por causa da minha voz. A minha única preocupação era com relação ao que os outros terráqueos iam pensar daquilo, ao que os brasileiros iam pensar, os portugueses, as pessoas que eu estava representando. Fiquei pensando em uma das coisas das quais os indivíduos se orgulham, pelo menos no Brasil, que eu saiba, e talvez nas outras culturas de língua portuguesa, que é a paz. Eu não nasci ontem, sei que Portugal tem uma história de colonização bastante violenta, guerras em Angola... Mas gostaríamos de ter paz, nós nos imaginamos como pessoas de paz. Acho que o Brasil se orgulha disso, apesar de ter sido violento com os índios e com outras minorias.
·         

Chegou a conversar pessoalmente com Carl Sagan?
Não. Primeiro porque era verão nos Estados Unidos, a universidade não estava em aula. E ele não trabalhou diretamente na parte das saudações. Foi uma mulher da equipe quem participou. Ele estava lidando com as pessoas acima e com seus pares. Até acho engraçado, porque muita gente imagina que ele estava em todo lugar, fazendo tudo, mas era uma missão bem complexa.
A Voyager 1 saiu oficialmente do Sistema Solar em 2013. Como a senhora se sente sendo um dos pouquíssimos seres humanos a ter a própria voz viajando pelo espaço interestelar?
É uma sensação de ter feito uma coisa muito única. Algo que pouquíssimas pessoas fizeram, e uma experiência que dificilmente pode ser repetida — se bem que existe algum projeto de mandar novas mensagens, mas nunca será igual a esse. Tenho muitos colegas que gostam de ficção científica, que inclusive já escreveram romances de ficção científica, e eu não gosto. Sempre digo que a minha ficção foi realidade, já sou interestelar e não preciso ler livros sobre pessoas que vão para o espaço porque já estou lá. Não faz meu gênero, gosto de outras coisas, mais de detetives do que de coisas do espaço. Porém, isso me faz rir um pouco, porque a Nasa é uma entidade norte-americana, mas eles tentam ser muito internacionais, e gosto disso.
Se a saudação fosse gravada hoje, a senhora mandaria a mesma mensagem ao universo?
É difícil, teria primeiro de imaginar que não gravei a outra — porque se fosse gravar de novo sabendo que já tinha feito, gravaria a mesma coisa porque deu certo. Se você me pegasse num dia pessimista, talvez hoje eu dissesse algo do tipo: “Fica longe, não vem para cá porque temos uma mania de destruir tudo aquilo em que tocamos. Se você estiver a caminho daqui, pega uma direita e vai para outro planeta, pois aqui só fazemos bagunça”.


sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

É este o novo mundo: coisificação de pessoas, ressentimentos e esperança?

"O mundo vai ser negro", diz filósofo camaronês
Teórico camaronês do pós-colonialismo Achille Mbembe é o homenageado deste ano com o Prêmio Irmãos Scholl, na Alemanha, por seu incômodo livro "Crítica da Razão Negra".




Achille Mbembe: "Crítica da Razão Negra"

"As lógicas de distribuição da violência em escala planetária não poupam nenhuma região do mundo, não mais que a vasta operação em curso de depreciação das forças produtivas", constata o filósofo e historiador Achille Mbembe no epílogo de seu livro "Crítica da Razão Negra". Trata-se de um pontapé inicial rumo a uma nova visão de mundo, o que comprova a atualidade da obra do teórico camaronês, sobretudo quando se pensa nas muitas guerras e conflitos ou nos incontáveis jovens desempregados, principalmente na África.

E foi por esse olhar afiado "sobre a sociedade mundial globalizada, que não remove apenas mercadorias e capital, mas também pessoas e força de trabalho", que Achille Mbembe recebeu em Munique, na segunda-feira (30/11), o Prêmio Irmãos Scholl. A premiação acontece anualmente em homenagem a uma obra "que dê provas de independência intelectual, seja capaz de incentivar a liberdade civil, bem como a coragem moral, intelectual e estética".

Rebelião de estudantes na África do Sul: Soweto dos anos 1970

Justiça universal no mundo
A questão simples, porém tocante, abordada por este filósofo político, acaba sendo "a questão do mundo": O que é o mundo? Como são "as relações entre suas diversas partes?". Como viver neste mundo? A quem pertencem os recursos? O que move ou ameaça este mundo? Todas essas são questões mais atuais que nunca. A resposta de Mbembe é a visão de uma comunidade universal: "Só há um mundo e todos temos direito a ele". No entanto, segundo a tese do teórico, antes que possamos criar um lar como seres humanos neste mundo comum, precisamos tratar da história dos traumas e das feridas. "Restituição e reparação estão, portanto, no centro da própria possibilidade de construção de uma consciência comum do mundo, ou seja, do cumprimento de uma justiça universal", escreve o filósofo.

devir-negro do mundo

É assim, portanto, que este pensador do pós-colonialismo imprime sua explicação de mundo. Mbembe estudou na Sorbonne, em Paris, depois de passar por Berkeley, Yale e outras instituições acadêmicas conceituadas dos EUA. Hoje, leciona na Universidade de Witwatersrand em Johanesburgo, África do Sul. Seu livro "Crítica da Razão Negra", publicado em 2013 originalmente em francês (e traduzido para o português em 2014), embora seja considerado pelo próprio autor como "um ensaio", é um tratado cheio de meandros sobre racismo e capitalismo, cujas teses são construídas acadêmica e também poeticamente.

"Razão negra" – quem por ventura pensar em qualquer tipo de conceito que possa remeter a "black is beautiful", estará totalmente equivocado. O que Mbembe reconhece é um "enegrecimento do mundo" em uma época de "crespúsculo europeu". E o substantivo "negro", para ele, é compreendido como "toda a humanidade subalterna", incluindo as hordas de operários mal remunerados da indústria chinesa, bem como os milhões de refugiados, que perderam tudo, ou os migrantes europeus em busca de emprego, submetidos a condições precárias de trabalho. Mbembe analisa o desenvolvimento desta "cisão" e "codificação da vida social em normas, categorias e números". Para isso, ele volta mais de 500 anos na história. No centro de seu tratado recheado de teses, está o conceito do nègre – palavra usada em determinados idiomas hoje somente entre aspas, conotada negativamente e associada ao conceito de racismo.

Escravos na plantação de cana de açúcar em Cuba: pintura de Patricio de Landaluze (1874)

Os Condenados da Terra
Segundo Mbembe, o "Negro" é uma construção material e fantástica, que passou por três fases. A primeira delas, que foi do século 15 ao 19, se deu com a espoliação organizada através do tráfico transatlântico de escravos. Na segunda fase, os "seres cujos direitos foram usurpados" lutaram, a partir do fim do século 18 até o fim do apartheid há aproximadamente 20 anos, pela libertação e emancipação como "sujeitos completos do mundo vivo". A terceira fase é esta na qual vivemos, a "da globalização dos mercados, da privatização do mundo sob a égide do neoliberalismo" – uma fase que começou no início do século 21 e que "é dominada pelas indústrias do silício e pelas tecnologias digitais".

Em mais de 300 páginas, Mbembe comprova que, sem o "Negro", o capitalismo não teria podido se desenvolver desta forma como se desenvolveu e ainda se desenvolve, transformando continuamente as pessoas em mercadorias. Para isso, o teórico faz uso de citações que vão do viajante Alexis de Toqueville a Frantz Fanon, o mentor francês do pensamento descolonizador. "Poder predador, poder autoritário e poder polarizador, o capitalismo precisou sempre de subsídios raciais para explorar os recursos do planeta. Assim o foi e assim o é, ontem e hoje, ainda que atualmente ele esteja colonizando o seu próprio centro e que as perspectivas de um devir-negro do mundo nunca tenham sido tão evidentes".

Um livro para a sociedade mundial globalizada
Immanuel Kant estabeleceu em 1781, com sua obra principal de teoria do reconhecimento intitulada "Crítica da Razão Pura", os conceitos decisivos para o Iluminismo. A partir desta herança, Achilles Mbembe criou, com seu trabalho sobre o afropolitanismo, nada menos que os princípios teóricos de um "projeto de um mundo por vir", um mundo "liberto do peso da raça e dos ressentimentos".

O Prêmio Irmãos Scholl é concedido pela Federação Estadual da Baviera da Associação do Comércio Livreiro Alemão, junto com a prefeitura de Munique, dentro do Festival de Literatura que acontece na cidade. A premiação, no valor de 10 mil euros, leva o nome de Hans e Sophie Scholl, dois combatentes da resistência, mortos pelos nazistas. Em 2014, o prêmio foi entregue a Glenn Greenwald, parceiro de Snowden, por seu livro No Place To Hide, lançado no Brasil sob o título Sem lugar para se esconder: Edward Snowden, a NSA e a espionagem do governo americano.