Como o
musical “Hamilton” revolucionou a arte e a ciência do som da Broadway
Escrito por Sam Gustin
15 June
2016 // 06:08 PM CET
Hamilton, o
espetáculo da Broadway sobre Alexander Hamilton, o “pai dos Estados Unidos
estampado na nota de dez dólares”, dominou a cerimônia do Tony Awards, o maior prêmio do teatro norte-americano, no último domingo. O fenômeno cultural fora
indicado a 16 prêmios, um recorde.
Entre os conhecedores da arte, não
havia dúvidas de que o Tony seria um triunfo para o musical mais celebrado da Broadway nos últimos tempos. E não deu outra: Hamilton
levou 11 estatuetas para casa.
O criador e estrela de Hamilton,
Lin-Manuel Miranda, já foi agraciado com a bolsa acadêmica MacArthur para “gênios” e um prêmio Pulitzer. A trilha sonora original do
musical ganhou disco de platina, um Grammy e alcançou o topo da lista de
rap da Billboard. Miranda, o elenco e a equipe criativa foram saudados em uma
cerimônia na Casa Branca, em que a Primeira Dama Michelle Obama descreveu o show como a
“melhor obra de arte, entre todos os formatos, que já vi na vida”.
Dizer que Hamilton é o
maior burburinho do momento não faria jus ao fenômeno. Os ingressos estão
esgotados até janeiro de 2017 e podem ser encontrados a 1.000 dólares por cabeça em mercados secundários,
chegando a 10.000 dólares para a última apresentação de Miranda, dia 8 de julho. É bem provável que o
espetáculo, que agora lucra 1,5 milhão de dólares por semana,
permaneça em cartaz na Broadway por mais de uma década e que chegue a vender mais de um bilhão de dólares em ingressos.
Nessa febre por Hamilton,
um aspecto da produção ainda não ganhou as honrarias merecidas: o design de som
inovador que complementa com louvor o retrato do imigrante caribenho Hamilton,
cujas expedições com o pai fundador mais famoso dos Estados Unidos durante e
após a Guerra da Independência estabeleceram os alicerces para uma nova nação.
Em uma entrevista para o
Motherboard no teatro Richard Rodgers, antes da matinê de quarta-feira, o
designer de som de Hamilton, Nevin Steinberg (veterano aclamado da Broadway, por
mérito próprio) discutiu os aspectos tecnológicos do sistema de
áudio do musical, além do velho debate filosófico sobre a definição do design
de som, se é um ofício técnico ou uma forma de expressão artística ou uma
mistura de ambos.
O sistema
é configurado com precisão para que cada uma das 20 zonas do teatro receba o
próprio mix customizado
Para Steinberg, 49 anos,
pós-graduado em Harvard, antigo membro da famosa sociedade acadêmica de teatro Hasty Pudding, Hamilton surgiu como um
pacote singular de desafios — e oportunidades — em parte porque o musical é
essencialmente um estudo de variações temáticas, idiomáticas e dinâmicas. Ao
longo de duas horas e quarenta e cinco minutos, intervalo incluso, os gêneros
musicais mudam de uma hora para outra, e o som explora contrastes extremos de
volume e densidade lírica. O musical mexe com um leque e tanto de emoções, do
alto da euforia às profundezas do desespero.
“É para isso que um designer de
som vive”, disse Steinberg, que lidera a produção e a equipe de design de som
de Hamilton, composta por cinco pessoas. “O intuito é ajudar as pessoas
a focar no que escutar e guiá-las pela história."
Quando o material apresenta esse
tipo de abrangência dinâmica, os designers de som vão longe. Lin costuma dizer
que Hamilton é o musical mais barulhento e mais tranquilo da Broadway.
“De fato, testamos todos os limites entre momentos barulhentos e momentos
tranquilos dentro de um auditório da Broadway, a serviço de uma narrativa
repleta de caos, violência e entusiasmo, e também marcada por introspecções
mais plácidas.”
No começo da apresentação, o Rei
George III (encenado, até então, pelo ator Jonathan Groff) canaliza o pop da
“Invasão Britânica” dos anos 60, com referências a Getting Better e Penny
Lane, dos Beatles. (Paul McCartney adorou o musical, claro.)
Pouco tempo depois, Daveed Diggs, que atua nos papéis de Lafayette e Jefferson,
manda ver nos raps, com quase 200 palavras por minuto, na
hora da frenética canção Guns and Ships. Canções conjuntas tempestuosas,
como Yorktown (The World Turned Upside Down), que contém explosões e
tiroteios pujantes, abrem caminho para baladas cristalinas como Dear
Theodosia, enotada por Burr e interpretada por Leslie Odom Jr., canção que
deixa a plateia de respiração presa, atenta a cada notinha.
A principal fileira de alto-falantes está instalada
sobre o palco, com caixas d&b Y8s novinhas em folha — Hamilton é um
dos primeiros musicais da Broadway a trabalhar com elas. Créditos: Jackson
Krule/MOTHERBOARD
O sistema
de som de Hamilton, cuja montagem custou “sete algarismos”, segundo
Steinberg, é formidável, para dizer o mínimo.
São 172 caixas, um novo recorde
para Steinberg na Broadway, localizadas entre os 1.319 assentos do teatro
Richard Rodgers. Há saídas de som acima, ao redor, atrás e até embaixo das
cadeiras, envolvendo a plateia em um ambiente sônico exuberante em que o som
parece vir de tudo quanto é ângulo. O sistema é configurado com precisão para
que cada uma das 20 zonas do teatro receba o próprio mix customizado — cada um
cuidadosamente calibrado durante os ensaios —, de acordo com a localização no
auditório.
As caixas de som do musical são
de última geração. A principal fileira de alto-falantes está instalada sobre o
palco, com caixas d&b Y8s novinhas em
folha — Hamilton é um dos primeiros musicais da Broadway a trabalhar com
elas, disse Steinberg — e são reforçadas por amplificadores ARC L-Acoustics no proscênio. Os seis subwoofers da marca Meyer
Sound, incluindo dois 1100-LFC de frequência extremamente baixa —
Steinberg se refere a eles como “monstros” —, são ideais para os sons graves
dos baixos de hip-hop.
Steinberg disse que os dois
subwoofers Meyer Sound, localizados fora do palco, à esquerda e à direita, são
novidade nos musicais da Broadway. “Foram projetados para arenas grandiosas e
estádios”, disse. “Uma das coisas mais interessantes de Hamilton é que
temos elementos de música e orquestração em frequência tão baixa, que
precisamos desse tipo de potência.”
A mesa de som do musical é uma DiGiCo SD7T possante, tecnologia de ponta para
produções de música ao vivo. “Precisamos de algo com uma capacidade tremenda,
tanto em termos de entrada quanto saída”, disse Steinberg. “Também contamos com
um software excelente, feito sob medida para o teatro, o que é bem incomum no
nosso meio, visto que quase tudo é empréstimo de outras indústrias, como o rock
ou trabalhos orquestrais.”
Hamilton conta com uma tecnologia de som
de ponta. Créditos: Jackson Krule/MOTHERBOARD
Quando Hamilton chegou ao
bairro nobre dos musicais, no teatro Richard Rodgers, no verão passado, após
uma temporada no Public Theater, casa para 280 pessoas, Steinberg e seus
colegas decidiram trabalhar com todo o sistema a uma taxa de amostragem de
96kHz (a partir de 48kHz), o que resulta numa reprodução de som de altíssima
fidelidade. Isso permite que o som fique notavelmente claro (assim, a plateia
consegue ouvir todas as palavras das densas canções de rap e hip-hop) e
dinâmico — tanto os momentos tranquilos quanto os barulhentos ficam
cristalinos, sem distorções.
“É uma questão de resolução”,
disse Steinberg. “Como os megapixels de uma câmara. Mais megapixels significam
maior resolução. Muito mais frequências são absorvidas por segundo, o que
significa que, quando as sobrepomos de volta, há menos espaço entre elas, o som
fica mais preciso. Fica mais claro, mais limpo, e reproduz mais conteúdos
originais pelo sistema de som do que taxas de amostragem mais baixas.”
Além dessa potência tecnológica e
parafernália toda, Steinberg se deparou com muitas outras decisões no âmbito
estético. Por exemplo, que microfones devem ser utilizados? Onde devem ser
colocados? Microfones de lapela tal e qual apresentadores de TV? Microfones nas
perucas, escondidos no cabelo dos atores? Fones de ouvido que se estendem até a
boca?
“Na verdade, os microfones variam
de ator para ator”, disse Steinberg. “Cada um tem um equipamento próprio.” Por
exemplo, Burr e Washington cantam em booms, ao passo que outros atores usam
microfones sob as perucas ou presos ao cabelo. Durante as famosas canções Cabinet
Battle #1 e Cabinet Battle #2, quando Hamilton e Jefferson mergulham
em duelos de rap para discutir o rumo econômico e a política internacional da
jovem nação, os atores usam microfones Shure retrô, que Steinber descreve como
“instrumento essencial do hip-hop”.
Na hora de montar o sistema de
som de Hamilton — e adquirir o equipamento necessário para fazer tudo
funcionar — Steinberg recebeu carta branca total e suporte financeiro dos
produtores do show. Será que ele se sentiu como uma criança numa confeitaria?
“Até parece”, disse ele com um riso mordaz. “Levo a responsabilidade de gastar
dinheiro tão a sério, que fico ansioso. Perdi muitas noites de sono pois é uma
quantia de sete algarismos só para o sistema de som da casa. Não subestimo
isso, faço muita pesquisa e ouço muita coisa, e passo basante tempo tentando
tomar decisões responsáveis.”
O designer de som de Hamilton , Nevin
Steinberg, no teatro Richard Rodgers, em Nova York. A mesa de som do musical é
uma DiGiCo SD7T possante. Créditos: Jackson Krule/MOTHERBOARD
Os designers de som da Broadway
são responsáveis por tudo que a plateia escuta durante as apresentações, nos
mínimos detalhes, incluindo amplificação, material gravado, caixas de som e
sistema de monitoramento dos atores e músicos. Contudo, designers de som também
exercem um papel criativo importante, além dos aspectos técnicos do trabalho,
de acordo com Steinberg.
“Design de som é narrativa e atenção
a detalhes”, disse ele. “As orelhas humanas são deveras sensíveis e se conectam
diretamente com as centrais neurológicas de emoção e humor, chateação e
tranquilidade. É parte do meu trabalho trabalhar com as expectativas da plateia
e ajudar a comunicar a maneira como a história é contada no teatro.”
Em outras palavras, o design de
som é tanto um ofício técnico quanto uma forma de expressão artística,
segundo Steinberg, que rejeita a noção de que seu trabalho pode ser englobado
por qualquer outra categoria de prêmios.
“É um debate antigo, e estou
determinado a dizer que é as duas coisas”, disse. “Costumo comparar com a
produção de vinho. O design de som requer alto conhecimento técnico, bem como a
produção de vinho exige noções profundas de ciência orgânica e a compreensão de
diversas reações químicas e variações de açúcar ao longo do tempo. Mas, no fim
do dia, é uma taça de vinho, tem que ser saborosa.”
“Creio que o design de som é
muito parecido”, continuou. “Temos um conhecimento técnico tremendo, mas em
última instância, a experiência da plateia e dos atores precisa ser excelente,
especialmente na Broadway, e acaba virando uma questão de gosto. O sucesso
requer rigor e profundidade técnica, mas o empreendimento per se é
artístico.”
De uns anos para cá, o design de
som virou um assunto controverso na Brodway. Em 2008, décadas após os designers
de som serem creditados pela primeira vez nos musicais, os prêmios Tony criaram as categorias de
melhor design de som de uma peça e melhor design de som de um musical. No
entanto, em 2014, o Comitê de Administração dos prêmios Tony abruptamente anunciou a eliminação
das categorias, gerando protestos entre designers de som e fãs da Broadway e
uma petição para restabelecerem as
premiações que já angariou mais de 30.000 assinaturas.
O comitê não explicou a decisão,
mas reportagens da época
mencionaram a ignorância por parte dos eleitores do Tony acerca “do que é o
design de som e como é possível avaliá-lo”, além da crença entre os membros do
comitê de que o design de som é “um ofício técnico, e não uma forma de arte
teatral que o Tony pretende homenagear”.
“Quando o Tony deixa de
reconhecer os designers de som pelos seus esforços, envia uma mensagem clara:
que o que fazemos não é criativo, que não somos verdadeiros artistas, que somos
membros descartáveis da equipe de produção”, o notório compositor John Gromada, indicado ao Tony de design de som
em 2013, escreveu recentemente.
“O elemento design de som não é
apenas girar botões e gerir amplificadores.”
Em uma declaração sucinta
fornecida ao Motherboard, Charlotte St. Martin, presidente da Brodway League, e
Heather Hitchens, presidente da American Theatre Wing, as duas organizações que
apresentam o Tony, declararam: “Determinamos que seria mais apropriado para o
design de som receber um prêmio especial no caso de alguma realização
extraordinária, em vez de mantermos uma categoria a parte.”
A remoção do Tony para design de
som ainda é um assunto sensível na Broadway. Steiberg foi indicado seis vezes
antes da categoria ser eliminada e nunca venceu. Cinco vezes foi indicado como
aclamado diretor fundador do coletivo Acme Sound Partners e outra
pelo musical Cinderella, de Rodgers e Hammerstein. E ele não se ateve na hora de
expressar o desgosto pela eliminação do prêmio.
“O que fiz em Hamilton
representa apenas um dos 40 musicais da Broadway desta temporada. São 40
designers de som que fizeram produções semelhantes; é um trabalho rigoroso,
atento e criativo, exigido às equipes dos musicais todo santo ano”, disse
Steinberg. “E isso explica por que a eliminação do prêmio pesou tanto para a
comunidade.”
O diretor de Hamilton,
Thomas Kail, indicado ao Tony, também não está contente com o desaparecimento
da categoria de design de som.
“Quatro designers trabalharam no
musical — de cenário, som, iluminação e figurino”, Kail contou ao Motherboard.
“Fica confuso para mim quando um desses elementos deixa de ser considerado. O
elemento design de som não é apenas girar botões e cuidar de amplificadores.
Não consigo engolir como, em dado momento, apenas três designers merecem certo
reconhecimento e o quarto, não. Simplesmente, não entendo.”
Com o design de som excluído da
cerimônia de domingo, os prêmios Tony falharam em reconhecer aquilo que todos
que viram — e ouviram — Hamilton na Broadway já sabem: que o
trabalho de Steinberg e sua equipe representa uma contribuição artística
extraordinária para o impacto geral do musical. Talvez não seja este ano, mas
se Steinberg continuar a produzir designs de som da forma que vem apresentando
em Hamilton, não vai precisar esperar muito para uma merecida chance no
Tony.
Tradução:
Stephanie Fernandes