FÁBULAS FABULOSA DE MILLÔR
FERNANDES (obrigado mestre!)
Prestem atenção Valmir da Integral e Darci. Parem de abusar do coração e
do estomago do povo. Pelas regras do universo tudo que vai, volta. Nem que para
isto ocorra uma eternidade. Parem de oferecer ao povo SOPA DE PEDRAS. Podem
acabar como o Serapião Pintumba ai ó.
A sopa de pedras
Quando terminou a guerra dos farrapos de
Canudos, uma guerra dessas aí!, Serapião Pintumba perambulou por muito tempo no
sertão. Á proporção que perambulava, penetrava, e, penetrando, sua miséria
aumentava – pois o interior fazia as cidades empobrecerem com ele. Até que um
dia chegou a uma aldeia de casas de taipa, distante de tudo, isto é, próxima de
nada. Serapião bateu numa porta e pediu um pedaço de pão. Foi escorraçado.
Bateu noutra porta, pediu um pedaço de queijo de cabra. Foi chutado. Bateu em
outra porta e pediu um pedaço de rapadura. Foi cuspido. Bateu em outra porta e
pediu uma lata velha. Foi atendido. Aí, Serapião se acocorou no meio da praça,
fez uma trempe, botou a lata em cima e ficou esperando o destino. O destino,
como sempre, juntou uns curiosos: “Que qui tu ta fazendo aí, Serapião Maluco?”
perguntaram. “Uma sopa”, disse Serapião. “Tô veno nada”, criticou um velho
crítico de sopas local. “Tão marranja água que cê vai vê”, disse
Serapião. Arranjaram água pro Serapião, e fogo, e ele, assim que a água
pegou uma fervura, jogou duas pedras dentro da lata e ficou lá mexe que mexe
com um pau. “Que sopa é essa?”, veio a próxima pergunta. “Sopa de pedra”, disse
Serapião. “De peeeeeedra?”, espantaram-se os habitantes da aldeia, em uníssono.
“E pode sopa de pedra? Nóis num cômi sopa aqui tem mais di méis. Si dava para
fazê sopa di pedra, a gente toda tava toda limentada.” Um demagogo presente
aproveitou a dúvida no ar e vociferou: “É como os eternos leguleios, eternos
prometedores de miragens, embaindo o povo do sertão com falácias infantis,
acenando para o povo com soluções miríficas enquanto palacianos governosos se
locupletam com suas gordas mordomias. Mas mesmo esses profissionais do
engodo jamais pensaram em proposta de solução alimentar tão estapafúrdia!”
Tomou ar e perguntou noutro tom: “Que é que você pretende exprimir,
dialeticamente, com sopa de pedra?” “Bem”, respondeu Serapião, um tanto
intimidado, a sopa pode sê só di pedra, né?, e inté qui sai boa. Mas se ocês mi
arranja um picadinho de tocinho, um pezinho di cove, um naquinho di rapadura,
aí dava muito in mió, né memo?” “Qué qui há, Maneco, sem essa!”, disse então um
pau-de-arara que tinha trabalhado em Ipanema durante seis meses, pendurado num
edifício da Vieira Souto, e por isso era considerado o grã-fino da aldeia.
“Sopa de pedra é sopa de pedra! Não vem com subsídios que aqui não tem disso
não. Você falou em sopa de pedra; vai ser sopa de pedra! Pessoal, todo
mundo fazendo sopa de pedra aí na praça!” Em poucos minutos, a praça estava
cheia de panelas, caldeirões, chaleiras, terrinas e latas fervendo com pedras.
E cada um já procurava fazer sua sopa melhor que a do vizinho, com um sabor
diferente: rocha, granito, sílex, calcário, pedra-pomes, basalto, pedra-sabão,
pedra-ume, pedregulho. Mas terminou tudo numa grande decepção. Nenhuma das
sopas de pedra tinha o menor gosto de sopa. Pior ainda – não tinha nem gosto de
pedra. Foi aí que um caboclo mais imaginoso descobriu a única utilidade da
pedra capaz de, naquele momento, satisfazer a todos os habitantes da aldeia.
Tacou um paralelepípedo na cabeça de Serapião, que caiu ali mesmo e logo foi
apedrejado por todo mundo, morrendo dilapidado.
Como na Bíblia.
Moral: Não se deve abusar da miséria do povo;
ele acaba ficando empedernido.
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