Chomsky e Krauss: Por Que Enviar Humanos ao Espaço Se Podemos Mandar
Robôs?
ESCRITO
POR DANIEL OBERHAUS
24 June 2015 // 09:32 PM CET
Vivemos tempos empolgantes. Pela primeira vez em
meio século, vemos uma grande corrida espacial. A cada dia que passa, nossa
compreensão de nós mesmos e do nosso universo possibilita enormes inovações nos
campos da ciência e tecnologia, tais como computadores que aprendem a se
programar e curas para males como o câncer ou AIDS.
Krauss (à esquerda) e Chomsky (à direita) debatem na Universidade Estadual do Arizona. Crédito: ASUOrigin |
Em meio a tantas descobertas, analisar as questões
científicas com olhar crítico pode ser complicado. Talvez a pergunta mais
crucial de hoje seja “a que custo?”. Um exemplo: ir ao espaço é ótimo, claro,
mas o que isso significa para o futuro da humanidade quando a exploração se
sujeita aos caprichos de empresas privadas? Nossas inovações científicas são
impressionantes, beleza. Mas quem as financia e quais são suas motivações?
Quando soube que o linguista e filósofo Noam
Chomsky estava vindo à Phoenix, no Arizona, para participar de um debate com o
físico Lawrence Krauss, pensei que não poderia deixar passar a oportunidade de
discutir esses temas cada vez mais importantes com duas das figuras
intelectuais mais proeminentes de nossos tempos. Ambos deram tantas
contribuições substanciais às respectivas áreas de estudo que não precisariam
serem apresentados, mas, para quem perdeu alguns dos mais emocionantes
desdobramentos da física teórica e da política nas últimas décadas, dou uma
forcinha.
Desde que começou a publicar seus artigos no começo
dos anos 50, Chomsky, professor emérito do MIT, escreveu mais de 100 livros
sobre uma variedade impressionante de temas, de linguística à ciência
cognitiva, a Guera do Vietnã e os méritos do anarcossindicalismo. Ele também
foi eleito como maior intelectual do mundo.
Já Krauss é físico teórico da Universidade Estadual
do Arizona e escreve sobre tópicos ligados à área e cosmologia. Ele foi um dos
primeiros físicos a sugerir que grande parte da energia e massa se encontra no
espaço vazio (agora chamado de energia negra) e recentemente promoveu um modelo
do universo em que o mesmo teria surgido do nada. Ele também é conhecido por
seu ativismo ateísta.
“Pode-se enviar um robô para
Marte pelo mesmo custo que se faz um filme sobre enviar Bruce Willis à Marte”
Dado seus campos de questionamento distintos e
complementares, Chomsky e Krauss têm coisas muito interessantes para falar
sobre o estado da ciência e exploração espacial. Nossa discussão se deu em dois
momentos e foi editada por questões de espaço e clareza.
MOTHERBOARD: Quais os riscos de deixar o futuro das
viagens espaciais nas mãos de interesses privados?
CHOMSKY: É como eleger um ditador para o mundo e dizer que
iremos obedecer a tudo que ele disser, não importa o quê. É um desdobramento terrível.
O meio ambiente e os bens comuns são tudo que compartilhamos. São uma posse
comunal. O espaço é mais ainda .Permitir que instituições artificiais como
empresas tenham qualquer controle sobre o ambiente espacial tem consequências
devastadoras. Com certeza minará esforços sérios de pesquisa.
KRAUSS: Creio que seja perigoso, apesar de improvável. Os
custos de ir ao espaço são altíssimos e os riscos, também. A única forma disso
se sustentar a longo prazo é com apoio governamental. A curto prazo, coisas que
envolvam distâncias menores, como voltas ao redor da Terra, contarão com
envolvimento de empresas privadas mas, na minha opinião, não existe modelo de
negócios que motivará os custos, dificuldade e tempo envolvidos para se enviar
alguém à Marte. Então é um problema se o governo desistir e cair fora dos
empreendimentos espaciais. No final das contas, a exploração espacial é algo
que deveria caber à sociedade decidir como conduzir.
Parece ser meio que uma faca de dois gumes. Se
esperarmos muito do governo acabaremos com esforços gigantescos de
militarização do espaço, como aconteceu durante a Guerra Fria.
KRAUSS: Quando falamos de exploração espacial, é
necessário termos um público bem informado explicando ao congresso por que e
como quer gastar dinheiro naquilo. Infelizmente, muita gente anda confusa e
acha que a exploração humana do espaço é a exploração científica do mesmo. Isso
não é verdade. Quando enviamos humanos ao espaço, gastamos 99,99% do orçamento
nos certificando de que eles sobreviverão. Como sempre digo, pode-se enviar um
robô para Marte pelo mesmo custo que se faz um filme sobre enviar Bruce Willis
à Marte.
Se realmente acreditamos na democracia, elegemos
representantes que tomam decisões pelas quais são responsabilizados. Pode-se
ter certeza que em algum momento o público tem voz no que quer e não quer ver,
mas essa voz precisa ser bem informada. Temos que decidir se é uma questão de
prioridade nacional e, se for, os eleitos têm que decidir quanto será gasto
naquilo. Acho que o governo busca militarizar tudo e o problema é que grande
parte do dinheiro gasto na militarização do espaço é invisível. São projetos e
programas secretos.
Após o programa Apollo e a queda da União Soviética
nos anos 90, as pessoas não falavam tanto da militarização espacial. Mas, como
Lawrence disse, a militarização não se foi. Sua influência só ficou eclipsada.
CHOMSKY: Se você reparar nas projeções da Força Aérea,
verá que muito foi feito tendo em mente a militarização e o monopólio do
espaço. Acontece todo o tempo.
Muita gente diz que, se não fossem pelas empresas,
não existiria isso de viagem espacial. Essas mesmas pessoas dizem que a
privatização do espaço é melhor que nada.
CHOMSKY: Se isso é verdade, é uma patologia social.
Poderiam ter dito o mesmo a respeito dos computadores. Não foi isso que
aconteceu. Eles foram desenvolvidos sob subsídio governamental por meio de
contratos públicos. A maior parte do trabalho criativo e arriscado foi feita
pelo governo. As empresas não queriam isso. Elas não queriam tomar para si
empreitadas arriscadas. Preferiam que o serviço público fizesse. Daí poderiam
pegar os resultados e vendê-los em troca de lucro. É assim que nosso sistema
funciona. Se você tem um iPad desmontado e se pergunta onde suas peças foram
desenvolvidas, verá que quase tudo foi criado dentro do sistema estatal. Se
falamos de farmacêuticos, as chances de que a pesquisa básica tenha sido
conduzida por um laboratório do governo ou uma universidade com recursos
públicos são altíssimas. As empresas privadas então pegam aquilo e vendem.
No caso dos computadores é impressionante: os
primeiros computadores pessoais comercializáveis surgiram quase 40 anos depois
de pesquisa e desenvolvimento da tecnologia criada com recursos públicos. Uma
das peculiaridades, por assim dizer, de nosso sistema de inovação e
desenvolvimento é que ele é radicalmente anticapitalista de diversas formas.
Por exemplo: muito do trabalho de risco e criatividade é feito com recursos
públicos. Pessoas que pagaram impostos nos anos 50 e 60 talvez não soubessem,
mas elas estavam criando o que no final das contas foi vendido pela Apple. E
não receberam nada por isso.
Acho que isso é uma patologia social e o mesmo vale
para o espaço.
O custo de entrada no espaço é altíssimo e o mesmo
vale para a ciência. Qual a melhor maneira de abordarmos a questão de explorar
o espaço?
CHOMSKY: Vendo toda a história do programa espacial,
vemos que muita coisa interessante foi descoberta, mas de forma que vai do
equivocado ao enganoso. Qual foi o sentido de colocar um homem na lua? Uma
pessoa é o pior instrumento possível para se colocar no espaço: você tem que
mantê-la viva, o que é complexo, envolve procedimentos de segurança. A forma
correta de explorar o espaço é com robôs, o que ocorre agora. Então por que
tudo começou com um ser humano? Por questões políticas.
KRAUSS: Claro que deveríamos pressionar o governo a
destinar mais fundos para programas espaciais. Mas, de novo, se você me
pergunta se deveríamos destinar finanças para a exploração humana do espaço,
minha resposta seria que não. A exploração espacial não-tripulada, do ponto de
vista científico, é muito mais relevante e útil. Se a ideia é só aventura,
então é uma coisa completamente diferente. Mas da perspectiva da ciência,
deveríamos investir em exploração espacial não-tripulada.
CHOMSKY: John F. Kennedy queria superar o fiasco da
Baía dos Porcos e o fato de que os russos haviam saído na nossa frente, por
mais que os cientistas norte-americanos soubessem que isso não era verdade. Era
necessário um evento dramático, como um homem andando na lua. Não faz muito
sentido ter alguém ali, a não ser para impressionar outras pessoas.
Assim que o público cansou de ver um cara qualquer
tropeçar pela lua, os projetos chegaram ao fim. E aí começou a exploração
espacial como empreitada científica. As coisas continuam a se desenvolver
assim. Cito, mais uma vez, o desenvolvimento dos computadores. Isso foi
apresentado sob a rubrica da defesa. O Pentágono não diz ‘vamos pegar seus
impostos para que talvez seu neto possa ter um iPad’. O que eles dizem é que
‘estamos nos defendendo dos russos’. O que fazem mesmo é ver se conseguem criar
algo inovador para a economia.
Quão grande você acha que é a influência das empresas
privadas em pesquisa e desenvolvimento no ambiente universitário?
CHOMSKY: Não sei de nenhuma pesquisa séria, mas existe
uma noção generalizada de que o financiamento privado tende a ser voltado para
o curto prazo, com foco mais estreito e aplicação mais imediata do que
financiamento governamental ou institucional. Não é de surpreender que as
pessoas exagerem o papel das empresas. Quando se compra um computador, remédio
ou outro bem que exige muita pesquisa científica, você percebe o que as empresas
adicionaram. Nunca nos damos conta do longo período de pesquisa básica que
serve como fundação para as aplicações do mercado.
A ciência climática é uma área em que os interesses
privado e governamental podem ser percebidos de maneira muito poderosa. Vocês
acham que as empresas vão capitalizar em cima de tecnologias sustentáveis ou
lucrarão em cima de desenvolvimento não-sustentável até começarmos a nos
extinguir?
CHOMSKY: Os sinais não são dos melhores. Os cientistas
em geral concordam que a maior parte dos combustíveis fósseis deveria continuar
no solo se quisermos ter chances de sobreviver de modo decente. As empresas do
setor energético dedicam grandes recursos à extração de tudo que é possível
enquanto novas áreas de extração são abertas e os governos as subsidiam em uma
taxa de 5 trilhões de dólares anuais, de acordo com
estudo recente do FMI. O resto depende de nós.
Tanto a Universidade Estadual do Arizona quanto o
MIT tem forte relacionamento com os setores militar e de defesa. Como garantir
que esses interesses não atrapalhem o trabalho acadêmico?
CHOMSKY: No caso do MIT, que recebeu uma enorme verba
militar, o assunto foi estudado cuidadosamente por uma comissão de
docentes e alunos chamada Pounds Commission. Fiz parte dela e
os registros estão abertos ao público. As descobertas iam de acordo com a minha
própria experiência em um laboratório 100% financiado pelo exército e possivelmente
o centro acadêmico líder de resistência organizada à Guerra do Vietnã. O MIT
administrava dois laboratórios militares. No campus, não havia qualquer indício
de influência militar na pesquisa ou ensino. Em linhas gerais, a afirmação se
confirma. O financiamento por parte do Departamento de Defesa tem sido
direcionado ao desenvolvimento da economia a longo prazo, caso da revolução de
TI. Quando os resultados são comercializáveis, eles são entregues às empresas
privadas para sua aplicação e lucro. Em grande parte se trata de um sistema de
subsídio público e lucro privado.
Seria a ‘liberdade acadêmica’ nas ciências uma
contradição neste caso?
KRAUSS: Há a liberdade acadêmica de não aceitar o
dinheiro! Na minha experiência, houve muitos casos em que as comunidades
disseram que não aceitariam o dinheiro dos militares. Há um histórico na
comunidade física de dizer que não aceitaremos a grana para Guerra nas Estrelas. Achamos se tratar de algo
equivocado, fisicamente ridículo e não aceitaríamos qualquer dinheiro para
aquilo, não importasse quanto Ronald Reagan quisesse gastar. A comunidade
científica tem que ser honesta com essas coisas e dizer quando são mal
concebida.
Não há dúvidas de que há gente correndo atrás de
dinheiro. Não me preocupo muito porque até quem aceita dinheiro dos militares
justificará porque pegou essa grana. No final eles só estão fazendo a pesquisa
que queriam mesmo. Muitas vezes adequam suas propostas para atender o que acham
ser os interesses do doador, mas acabam pesquisando aquilo que queriam. Agora,
até certo ponto, a disponibilidade do dinheiro em certas áreas atrapalha a
pesquisa. É um problema que não vejo como contornar.
Para encerrar, então: o público é desinformado, o
governo está militarizando tudo e as novas empresas espaciais veem a fronteira
final como uma mina de ouro. A situação não está nada boa. Como podemos engajar
o público de forma a democratizar a ciência e exploração espacial mais
ativamente?
CHOMSKY: Da mesma forma que se atrai a participação de
um público informado em outras questões. Para quem acredita na democracia, isso
é necessário.
KRAUSS: Não tem receita de bolo, mas você tenta fazer
com que as pessoas se interessem ao tornar a ciência mais interessante e indo
atrás delas. Você tenta fazer com que as pessoas percebam que aquilo é uma
parte importante de suas vidas, mesmo que elas não pensem assim e as faz se
interessar por assuntos que antes consideravam esotéricos, tediosos ou complicados.
É um trabalho longo e árduo que precisa começar cedo, investindo mais em
professores etc. Em partes está nas costas da academia, mas o governo também
tem que tentar encorajar o apoio na contratação de professores qualificados e
pagá-los com salários adequados para que escolham lecionar e não entrar para a
indústria.
Tradução:
Thiago “Índio” Silva
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