“O racismo extrapola a pura e simples ignorância”
Este texto e esta maravilhosa entrevista são como fossem minhas palavras. Como
eu gostaria de ter feito este milagre com minha vida. Mas está feito e é divino. Belo. Maravilhoso.
Em novembro, Conceição Evaristo chega
aos 69 anos. Uma vida repleta de batalhas, mas, sobretudo, plena em conquistas.
Nascida em uma favela na periferia de Belo Horizonte e radicada no Rio de
Janeiro há 45 anos, a escritora e poeta esteve em Salvador, no
final de julho, para lançar seu quinto livro, a coletânea de contos Olhos
D’Água, editada pela Pallas.
Por Kátia Borges Do Uol
Um dos nomes mais representativos da
literatura brasileira de autoria negra, Conceição
iniciou a carreira em 2003 com o romance Ponciá Vicêncio – sucesso de crítica e
tema de dissertações e teses – e participa de diversas antologias, no Brasil e
no exterior, além de publicar nos Cadernos Negros desde os anos 1970,
integrando o grupo literário Quilombhoje.
Mestre em literatura brasileira pela
PUC-Rio e doutora em literatura comparada pela Universidade Federal Fluminense,
atualmente é professora visitante da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG). Nesta entrevista, ela nos fala sobre o seu trabalho, fincado na
“escrevivência”, termo cunhado em seus livros que se tornou conceito
teórico; sobre o racismo como uma questão política contemporânea, que se
agrava a partir da globalização – em um jogo de poder e subalternização -; e
sobre a representação da mulher na mídia, sempre à mercê do machismo de
homens negros e brancos.
No seu poema A noite não dorme nos
olhos das mulheres, há um verso em que a senhora refere-se à “vigília atenta da
memória”. Em que medida a literatura representa hoje essa vigília?
A minha literatura é apontada muitas
vezes como memorialística, mas sempre digo que ela não é
memorialística no plano individual e, sim, atenta a uma memória da população
afro-brasileira e à não compreensão da importância dos africanos e dos
seus descendentes na construção da nação. Atenta ainda no sentido de ser uma
memória que reivindica outra história e, no plano da literatura, reivindica um
novo texto literário, no qual as personagens negras sejam protagonistas e não
apenas coadjuvantes. Esse fazer literário é um fazer sempre de prontidão, um
fazer sempre atento.
Quando, na opinião da senhora, será
possível finalmente “relaxar a guarda”?
Penso que esta literatura só apaziguará
no momento em que pudermos construir histórias em que as personagens negras
sejam plenamente vitoriosas. Aí se criaria uma literatura talvez mais amena,
não tão dolorosa como a nossa.
Ainda há forte resistência aos autores
afro-brasileiros no mercado editorial?
Sim. Eu e outros autores negros estamos
sempre publicando por editoras menores, e isso se reflete em dificuldades de
promoção e distribuição dos nossos livros, criando um círculo vicioso. E
essa dificuldade que é enfrentada pela autoria negra reflete a invisibilidade
que sofremos em outras atividades. Há poucos escritores negros, como há poucos
políticos, poucos presidentes de multinacionais e poucos galãs de TV.
Geralmente, os negros ocupam
papéis subalternizados na sociedade, inclusive na literatura, apesar de o maior
escritor brasileiro, Machado de Assis, ter sido um negro. Em determinadas
instâncias sociais, há uma espécie de permissão ao negro, para que ele exerça
uma cidadania lúdica, atuando na dança, na música… Mas, mesmo
assim, note como há poucos bailarinos clássicos negros, poucos cantores
líricos negros, poucos maestros negros. Mesmo nesses espaços, há
compartimentos. A não visibilidade do escritor negro se insere nesse
contexto.
Qual a alternativa então, em uma
sociedade tão compartimentalizada?
Penso que, em primeiro lugar, é preciso
ter atitude. Quando escrevi meu primeiro romance, ele ficou cerca de
vinte anos guardado. O segundo ficou de oito a dez. Muitas vezes, é preciso
encontrar caminhos alternativos de publicação. Eu comecei em editoras pequenas
e só então fui ganhando visibilidade. É preciso também, sem sombra de dúvidas,
pensarmos políticas públicas de publicação e circulação que contemplem
livros de autoria negra.
E há ainda a mobilização dos coletivos,
como o Quilombhoje. Desde os anos 70, participo dos Cadernos Negros, que
existem há 37 anos e são uma publicação importante e coletiva. Esses
caminhos alternativos, apesar de mais demorados que os abertos pelas
grandes editoras, tornam possível o surgimento desse trabalho.
A senhora é autora do conceito teórico
de escrevivências, que utiliza em seu trabalho ficcional. Em que medida, em sua
opinião, tal conceito aproxima-se ou distancia-se da chamada autoficção?
O interessante é que, quando uso
o termo escrevivência, em momento algum penso estar criando um conceito. Mas
observo que, de fato, pesquisadores em literatura e também de outras áreas,
como história e antropologia, deram-me a autoria desse conceito. Na
verdade, quem conceitua é muito mais o pesquisador. Eu, se me fosse
pedido para conceituar, não saberia, embora entenda o que seja e tenha
consciência plena daquilo que faço.
Em relação à autoficção, creio que sim,
que a escrevivência se aproxima da autoficção. Mas há uma diferença e gosto
sempre de frisar isso. Escrevo ficção como se estivesse escrevendo sobre
situações reais. Em Becos da Memória, digo que nada é verdade, mas
nada é mentira. Não é a minha história pessoal, não é uma autobiografia, embora
a história da personagem se aproxime em alguns aspectos da minha vida. São
ficções da memória, vivências coletivas que se transformam em literatura. O substrato
é a realidade.
O escritor angolano Pepetela diz que só
escreve ficção quem conhece a realidade, quem tem a vivência, quem tem a
memória, no plano pessoal e está em sintonia, em cumplicidade, com o coletivo.
A minha experiência como mulher pobre, como mulher negra, me autoriza a
escrever.
Quando crio um texto em que falo do
outro como alteridade é de mim, na verdade, que estou falando, porque eu
experimento aquele lugar de alteridade. Toda a minha escrita, seja ficção, seja
no âmbito teórico e acadêmico, é contaminada pela minha condição de mulher
negra na sociedade brasileira. É uma história compartilhada por muitas e muitas
mulheres. Da África à diáspora.
Mas na academia, e a senhora integra o
corpo docente da UFMG como professora visitante, há o pensamento dominante de
que os pesquisadores devem apagar o lugar de fala, não?
É verdade. Mas eu tenho certeza de que
nunca apaguei meu lugar de fala e não quero apagar o meu lugar de fala.
Em minha pesquisa de doutorado, quando fui trabalhar com textos de Agostinho
Neto, e outros autores afro-brasileiros, essa não foi uma escolha inocente.
Por exemplo, eu nunca faria uma
pesquisa, embora até ache interessante quem faz, sobre as funções do pronome
‘que’ na língua portuguesa, entende, não é algo que me atraia, que me seduza. O
Edward Said, creio que em Orientalismos: o Oriente como invenção do Ocidente,
fala que a grande motivação dele em estudar as questões orientais partiu da
condição dele como sujeito oriental. Penso que a neutralidade do pesquisador
seja uma falácia. E eu me sinto muito à vontade para dizer isso, porque
acredito que não existe lugar neutro e, quando se trata de literatura, menos
ainda.
Persiste na representação da mulher
negra na mídia, além do preconceito, o machismo, que é um dos temas que
perpassam seus contos em Insubmissas lágrimas de mulheres. Como transformar o
olhar sobre a mulher negra?
Penso que a representação da mulher
negra na literatura e na mídia só irá mudar quando pudermos criar nossa própria
representação. Nesse livro que você citou, vemos mulheres submetidas à
tirania de brancos e negros. Elas lutam também contra o machismo do homem
negro, embora esta não seja sua primeira luta.
O homem negro na sociedade brasileira
não tem as mesmas benesses que o homem branco tem, ele é fragilizado e,
frequentemente, é alvo da violência.
Mas, muitas vezes, como homem, acaba
submetendo as mulheres ao mesmo machismo. Mas acredito em mudanças, mesmo
quando elas acontecem lentamente, e a educação – e digo isso não apenas
no plano puramente educacional – tem um papel fundamental nesse processo de
transformação.
No conjunto, penso que temos uma
responsabilidade enorme, pois esta é uma luta que se dá no campo
simbólico e, portanto, ela é muito mais difícil. Trata-se de lidar
com representações da mulher negra arraigadas no imaginário coletivo.
A senhora falou sobre a importância da
educação, o racismo seria uma questão essencialmente de ignorância?
Também, mas esta é, sobretudo, uma
questão política. Se reduzimos o racismo apenas à ignorância, podemos imaginar
que apenas quem não teve escolarização suficiente, os não letrados, são
racistas. E, no entanto, o que vemos é a academia sendo racista, os políticos,
os intelectuais sendo racistas. É por isso que afirmo que essa é uma
questão essencialmente política. Se você observar bem, o racismo é criado muito
com o intuito de subalternizar o outro. Vivemos em um mundo globalizado, no
qual o capital é a força que substitui o diálogo. Nesse universo,
subalternizar o outro é uma forma de exploração, uma forma de impor o poder em
um jogo social. Então, penso que o racismo extrapola a pura e simples
ignorância.
O que a senhora pensa, por exemplo, da
revisão dos livros de Monteiro Lobato e das discussões sobre Machado de Assis?
Há um trabalho muito interessante, de
Eduardo de Assis Duarte, da UFMG, que está em segunda edição pela Pallas,
Machado de Assis Afrodescendente. E, antes dele, o Ianni, Octavio Ianni,
escreveu um artigo muito interessante, chamado Literatura e consciência, ainda
em 1988, mostrando a negritude implícita de Machado de Assis.
Como toda a formação dele foi marcada
por filósofos europeus e pelo que a intelectualidade europeia produzia na
época, há uma tendência geral da crítica em dizer que a ironia dele vem daí.
Mas Ianni contesta e diz que não, que a
ironia ferina de Machado de Assis tem origem na sabedoria popular e
pressupõe o povo olhando as classes privilegiadas. Nesse sentido, é
interessante pensar Machado tendo essa percepção de seu espaço, enquanto
sujeito negro, numa época em que não era permitido se pronunciar, como
podemos fazer hoje.
Penso que o texto de Machado permite
essa leitura, a de um homem negro que tenta se posicionar como tal, mas ainda
com muita sutileza, devido às pressões que o cercam. Quanto a Monteiro Lobato,
bem, eu fui criada lendo Monteiro Lobato, era a leitura que se tinha naquela
época… Creio que ele poderia ter sido um homem à frente do seu tempo, até para
pensar e propor um nacionalismo brasileiro, mas não há como negar estereótipos
de negros em sua literatura. Basta observar os diálogos de Emília com Tia
Anastácia.
Estão ali todos os preconceitos da
época, como ainda hoje encontramos em outros autores. Não é só Monteiro Lobato,
é a literatura brasileira como um todo, inclusive a literatura brasileira contemporânea,
que dissemina estereótipos tanto sobre a figura do negro quanto sobre a
figura do índio. Este é um imaginário que atravessa o tempo. O nacionalismo de
Monteiro Lobato exclui e, quando não exclui, não retrata dignamente os negros.
A senhora veio a Salvador lançar seu
novo livro. Em que medida sua literatura vai na contramão dos
estereótipos?
Meu novo livro, Olhos D’Água, tenta
quebrar estereótipos sobre as famílias negras. A protagonista é uma
mulher que inventa uma brincadeira amorosa com suas filhas, na qual a ternura é
traduzida entre elas pela cumplicidade do olhar. Pelo jogo do olhar, elas
conversam e se comunicam. Muitas vezes, a dureza da vida impede, mas é
fundamental pensar que, além de suprir as necessidades materiais, precisamos nos
suprir de ternuras. Nesse sentido, nos ver refletidos no olhar do outro é o que
nos mantém vivos.
Leia a matéria completa em: "O racismo extrapola a
pura e simples ignorância" - Geledés http://www.geledes.org.br/o-racismo-extrapola-a-pura-e-simples-ignorancia/#ixzz3jZQqWdlS - Follow us: @geledes on Twitter | geledes on Facebook