Atração da Flip 2015, escritor queniano Ngugi wa
Thiong’o fala sobre dilemas da África
GELEDES, GELEDES, vocês são demais...
Em entrevista exclusiva, um dos
principais autores do continente
defende a preservação das línguas
locais
Na década de 1960, enquanto a África vivia o colapso dos regimes
coloniais europeus, uma nova geração de escritores africanos despontou no
cenário mundial com obras que refletiam sobre as lutas por independência no
continente. Eram jovens intelectuais recém-saídos da universidade, que se
dividiam entre a participação ativa na campanha pela libertação de seus países,
muitas vezes pegando em armas, e a criação de uma literatura africana moderna,
ancorada no diálogo entre as tradições locais e a herança ocidental.
Ngugi wa Thiong’o entrou na linha de frente desse movimento em 1967,
quando publicou seu terceiro romance, “Um grão de trigo”. Lançado apenas quatro
anos depois da independência do Quênia, que deixou de ser colônia britânica em
1963, o livro era ao mesmo tempo uma afirmação da cultura queniana e uma
meditação sobre as contradições e incertezas do novo momento do país. Um dos
clássicos da literatura africana do século XX, “Um grão de trigo” será
publicado no Brasil pela primeira vez em junho, pela Alfaguara, em tradução de
Roberto Grey. Ngugi será um dos destaques da Festa Literária Internacional de
Paraty (Flip), que acontece entre 1 e 5 de julho, onde lançará também “Sonhos
em tempo de guerra” (Biblioteca Azul), primeiro volume de sua trilogia de
memórias.
Nascido em 1938, no vilarejo de Kamirithu, região central do Quênia,
Ngugi pertence à etnia gikuyu, a mais populosa do país. Foi criado pelas quatro
esposas de seu pai, numa casa onde o ritual noturno de contar histórias em
torno do fogo era parte sagrada da rotina. Sua infância e adolescência foram
atravessadas por conflitos históricos. Primeiro, a Segunda Guerra Mundial, na
qual quenianos foram forçados a lutar ao lado dos colonizadores britânicos.
Depois, nos anos 1950, a rebelião Mau Mau, quando uma guerrilha anticolonial
foi massacrada, mas abriu caminho para a independência conquistada na década
seguinte.
Escrito na Inglaterra, onde Ngugi estudou literatura nos anos 1960, “Um
grão de trigo” é ambientado nos quatro dias anteriores à declaração de
independência do Quênia, em 12 de dezembro de 1963, mas repassa a longa
história de choques com o poder colonial. O protagonista do livro é Mugo,
ex-prisioneiro político considerado em sua aldeia um herói da libertação, mas
que carrega a culpa por uma traição cometida num momento decisivo de sua vida.
Depois do sucesso do romance, escrito em inglês, o autor, batizado como
James Ngugi, adotou o nome atual e passou a escrever somente no idioma gikuyu.
Em 1977, no governo do presidente Jomo Kenyatta, líder nacionalista exaltado em
“Um grão de trigo”, Ngugi foi preso por causa das críticas sociais de seus
romances e peças em gikuyu. Libertado um ano depois, continuou a ser perseguido
e exilou-se nos Estados Unidos, onde vive até hoje, dando aulas na Universidade
da Califórnia-Irvine. Em 2004, quando voltou ao Quênia pela primeira vez depois
de 22 anos, sua casa foi invadida por três ladrões, que o agrediram e
estupraram sua mulher. Os invasores foram presos e condenados à morte.
Em entrevista exclusiva por telefone, da Califórnia, Ngugi fala sobre
sua obra e a conturbada relação com o país natal. Aos 77 anos, um dos maiores
escritores africanos vivos, sempre cotado para o Nobel, avalia os dilemas
enfrentados pela África desde as independências, diz admirar Jorge Amado e
defende a preservação das culturas locais como alternativa para o futuro do
continente.
Quais são suas memórias da infância no Quênia durante a Segunda Guerra
Mundial?
Como o Quênia era uma colônia britânica, muitos quenianos tiveram que
lutar ao lado de seus dominadores. Minhas memórias mais antigas são de comboios
carregando soldados armados. Também lembro de prisioneiros de guerra italianos,
que eram mandados para o Quênia depois de serem detidos na região da Somália
disputada por britânicos e italianos. Eles vinham ao nosso vilarejo nos
intervalos do trabalho forçado na construção de estradas. Tentavam comprar ovos
e seduzir nossas mulheres.
Qual era o papel das histórias na sua família e na cultura gikuyu?
Cresci numa casa com quatro mães e um pai. Ele estava ausente da nossa
vida a maior parte do tempo, mas as mães estavam sempre presentes. Eram elas
que nos davam comida, roupas e histórias. Essas histórias que elas contavam
eram muito importantes para nós. As gerações atuais podem não ter dimensão
disso, por causa da onipresença da TV, do rádio e da internet, mas naquela
época o ato de contar histórias era uma atividade diária. À noite, antes ou
depois do jantar, as pessoas contavam histórias, desde narrativas ficcionais
até relatos de encontros do dia e acontecimentos políticos ou simplesmente boatos
que circulavam pelo país. Eram como rituais em que sentávamos ao redor do fogo
para ouvir as histórias do dia.
Como muitas famílias quenianas, a sua se viu envolvida na rebelião
anticolonial Mau Mau, nos anos 1950. Um de seus irmãos se juntou aos
guerrilheiros e outro foi assassinado. Como enfrentaram esse período?
Mal acabou a Segunda Guerra, não fazia nem cinco anos que não víamos
mais os soldados, começou a guerra por nossa libertação. É importante lembrar
que o nome dos Mau Mau era Exército Terra e Liberdade. Foram os britânicos que
criaram essa onomatopeia tola para que o movimento parecesse mambembe e sem
foco. Mas o nome era claro: Exército Terra e Liberdade. Muitas famílias
quenianas se envolveram na guerra. A maioria ficou ao lado dos guerrilheiros
Mau Mau, mas algumas atuaram como força auxiliar da presença militar britânica.
Foi declarado um estado de emergência no país entre 1952 e 1960, que instaurava
a lei marcial no lugar da lei colonial “normal” — que já era uma espécie de lei
marcial, é claro. Toda a população do país foi atingida pelas operações
militares, de uma forma ou de outra. Famílias se partiram ao meio, casas foram
destruídas, houve um imenso êxodo humano, comparável às maiores tragédias da
História.
“Um grão de trigo” se passa no momento da independência, em 1963, mas
também recapitula a rebelião Mau Mau e toda a história do colonialismo no
Quênia. Um aspecto marcante é a ambiguidade dos personagens: Mugo, o
protagonista, é visto como um herói nacionalista em sua aldeia, mas se revela
um traidor. Críticos relacionaram esse traço do romance às contradições das
independências africanas. Como você avalia a forma como os quenianos lidaram
com a independência?
Como romancista, é claro que não me interesso por situações em preto e
branco, tento ver as nuances das personalidades e da História. “Um grão de
trigo” expressava meus sentimentos na época, quatro anos depois da
independência, quando eu sentia que muitas metas da luta pela libertação
estavam sendo deixadas de lado pelo novo governo pós-colonial. O romance
investigava aquele momento, quando não tínhamos uma ideia clara do que estava
errado, mas sentíamos que algo não ia bem. Daí a ambiguidade, talvez.
Quais eram suas maiores preocupações com o Quênia na época?
A forma como o país tratava os guerrilheiros que lutaram pela nossa
liberdade, por exemplo. Eles realizaram um grande sacrifício, mas estavam sendo
relegados a segundo plano. O que eu estava tentando dizer era: o povo do
Quênia, e da África, foi a base do sucesso das lutas anticoloniais e nossa
independência só terá sentido se conservarmos a unidade entre os líderes e os
povos. Não derrotamos os poderes coloniais porque tínhamos mais armas, e sim
porque tínhamos nosso povo. E ainda temos. Precisamos de líderes que saibam que
seu poder vem do povo.
Nos anos 1960, muitos escritores africanos lidavam com os temas do
colonialismo e da independência, como Wole Soyinka e Chinua Achebe, na Nigéria,
ou José Craveirinha, em Moçambique. Qual é o legado da sua geração de
escritores para a África?
Soyinka, Achebe, eu e vários outros éramos jovens nascidos sob o
colonialismo e estávamos amadurecendo junto com nossos países. Éramos
otimistas, não só em nosso discurso, mas também na energia com que nos
entregávamos ao trabalho. Nossa energia refletia a energia da luta anticolonial
em toda a África, mesmo quando criticávamos o que acontecia. Isso ajudou a
criar um sentido de “nova África”, à qual nós demos voz. Nossa geração veio de
uma tradição literária que ainda era muito ocidentalizada e ajudamos a formar
uma geração cuja tradição literária é o nosso trabalho. Eles podem construir a
partir do que nós construímos. Mas há um lado negativo nisso. Quase todos
escrevíamos em inglês, francês ou português, então ajudamos a criar uma
tradição literária africana na língua dos colonizadores, negligenciando nossas
próprias línguas africanas.
Nos anos 1970, você mudou seu nome de James Ngugi para Ngugi wa Thiong’o
e passou a escrever no idioma gikuyu. Como chegou a essa decisão?
Uma das contradições da condição pós-colonial é a descrença dos
africanos quanto às nacionalidades nativas. Ironicamente, tínhamos mais fé em
nós mesmos quando estávamos lutando pela independência. Depois, a classe média
africana passou a ter mais fé no que vinha de fora, incluindo os idiomas. Minha
posição é a seguinte: podemos fazer parte do mundo sem abandonar nossas bases.
Não precisamos abrir mão de nossos idiomas para nos integrar ao resto do mundo.
Devia ser justamente o contrário: nossa condição para fazer parte do mundo
deveria ser a fidelidade às nossas bases, incluindo nossos idiomas.
Você foi preso no Quênia em 1977, por escrever romances e peças no
idioma gikuyu. Por que isso era visto como ameaça pelo governo?
Se você quer se comunicar com as pessoas, tem que falar a língua delas.
No fundo, o governo não queria que eu escrevesse em gikuyu por medo de que isso
estimulasse as pessoas a tomarem consciência de si. Se você sabe todas as
línguas do mundo, menos a sua, isso é escravidão. Mas se sabe sua língua
materna e aprende outras, isso é poder.
Em “Um grão de trigo” e outros livros, você tem uma diálogo criativo com
autores ocidentais, especialmente Joseph Conrad. Qual foi o papel da literatura
ocidental na sua formação como escritor?
Falamos sobre minha educação noturna na casa das minhas mães e as
histórias que elas contavam. Como você pode imaginar, essa educação era bem
diferente da que tive na escola. Os livros que nos davam em sala de aula eram
todos em inglês, fomos educados em inglês. Mais tarde, quando fui estudar em
Londres, a literatura inglesa foi parte da minha formação como escritor e como
indivíduo. Não posso me livrar da literatura ocidental, nem quero me livrar
dela. Mas sei que isso também é parte do colonialismo. Por isso, é importante
olhar para outros lugares. Minha libertação mental não veio só com a valorização
dos idiomas africanos, veio também com a descoberta de outras literaturas que
não a europeia. Lembro até hoje do que senti lendo Jorge Amado. Não falo
português, mas mesmo na tradução inglesa tive a sensação de vivenciar o dia a
dia descrito nos livros dele.
Quais são os maiores desafios ainda enfrentados pelo Quênia e outros
países do continente, décadas depois das independências?
É fundamental não subestimar a importância das independências africanas,
mesmo com seus problemas. Mas elas nem sempre significaram a liberdade de um
país ou sua real independência econômica. Até hoje, quem extrai o ouro, o
diamante e o cobre da África? Quem lucra com isso? Os recursos africanos ainda
são controlados por corporações estrangeiras. Um povo só pode dizer que é livre
se controla sua economia, sua política e sua cultura. A descolonização só
estará completa quando tivermos relações baseadas na troca, não na exploração.
Como é sua relação com o Quênia hoje, depois da prisão, do exílio e do
ataque contra você e sua mulher em 2004?
O Quênia hoje tem um clima político melhor. Já não matam dissidentes,
nem prendem por traição. A insegurança continua e a economia é instável, mas
estou otimista. Hoje sinto que posso ir ao Quênia, já voltei outras vezes desde
2004 e vou de novo em junho. O país está mais aberto.
Você acompanha a nova geração de escritores africanos que começa a ficar
mais conhecida no mundo, como a nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, o queniano
Binyavanga Wainaina e o etíope Dinaw Mengestu? Como ela se compara à sua geração?
É muito animador comparar minha geração com a atual. Na minha época,
dava para contar os escritores africanos nos dedos. Hoje são vários — eu mesmo
tenho três filhos e uma filha que já publicaram livros (risos). Essa nova
geração explora áreas diversas com muita coragem, eles são mais viajados,
conhecem o mundo. Minha preocupação é que não vejo muitos deles abraçando
línguas africanas. Fico feliz por ver autores africanos fazendo sucesso
internacional, mas sinto que as línguas africanas podem morrer se não conseguirmos
que os jovens se interessem por elas. Mas como vamos fazer isso se os governos
africanos não têm qualquer política para as línguas do continente, e na verdade
são até contra elas? Eu gostaria de ver um líder africano falando com seu povo
na língua local. Gostaria de ver línguas africanas no currículo das escolas.
Gostaria de ver mais livros publicados em línguas africanas, mais traduções
entre línguas africanas e de idiomas estrangeiros para línguas africanas.
Gostaria de ler Jorge Amado em gikuyu. Por que não?
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