sábado, 28 de novembro de 2015

Não podemos esquecer que 1984 começou assim

Ignacio Ramonet: em troca de suposta segurança, sociedade admite estado de vigilância maciço
Carlos del Castillo | Madri| Publico - 27/11/2015 - 06h00
Jornalista adverte que ‘sociedade não tomou consciência’ da ameaça que a vigilância maciça representa, apesar dos alertas de Assange e Snowden; 'hoje é mais seguro enviar carta pelo correio do que por e-mail, ninguém vigia carta', afirma
  

Ignacio Ramonet dirigiu durante 18 anos Le Monde Diplomatique, um dos órgãos de imprensa de maior prestígio no mundo e principal tribuna do movimento altermundialista. Enraizado na França, esse jornalista espanhol que atualmente dirige LeMondeDiplo, a versão espanhola da citada publicação mensal, analisa como o Governo do presidente francês François Hollande aprova um corte de liberdades e a prorrogação por três meses do estado de emergência, tentando fortalecer a capacidade de suas forças de segurança.

Para o autor de El Imperio de la Vigilancia, Ediciones Galileo (O Império da Vigilância), os governos “não podem garantir a segurança total”. No entanto, “o estado de emergência implica o abandono das liberdades democráticas e republicanas”, ao mesmo tempo que “hoje em dia há instrumentos para vigiar todos”. Uma vigilância que, além do mais, “é ineficaz”. É a tese de Ramonet em seu novo livro, transformado quase em premonição, pois foi publicado na quinta-feira, 12 de novembro. Um dia depois ocorreram os atentados jihadistas que levaram a “intimidada” sociedade francesa a não criticar as medidas propostas por Hollande. Para Ramonet, é um erro.

Publico: A sociedade francesa, que tradicionalmente defende seus direitos com tenacidade, aceitará ter menos liberdade em troca de mais segurança?
Ignacio Ramonet: Estamos no momento mais emotivo. Os atentados ocorreram na sexta-feira passada [13/11], e a partir daí foram sendo conhecidos os detalhes do que aconteceu, com os depoimentos de gente que viveu um inferno. Neste momento, o Estado pode pedir praticamente o que quiser à sociedade, e ela está em condições de lhe outorgar.
Agência Efe
 Chanceler alemã, Angela Merkel, presidente francês, François Hollande, e prefeita de Paris, Anne Hidalgo, participam de homenagem às vítimas dos atentados realizados pelo EI

Acabamos de ver como o presidente conseguiu uma união nacional em plena campanha para as eleições de 6 de dezembro. Conseguiu aprovar uma série de medidas, algumas delas propostas pela direita, em meio a um unanimismo geral. Quando ocorrem monstruosidades como a de Paris, as sociedades se intimidam. Quase não houve críticas à prorrogação do estado de emergência, que representa um abandono das liberdades democráticas e republicanas. No meu livro falo do que se passou depois do 11 de Setembro, quando os EUA promulgaram o Ato Patriótico, com essa mesma ideia, um contrato com os cidadãos: aceitem perder um pouco de vossas liberdades e eu lhes vou garantir maior segurança. O problema é que o Ato Patriótico ainda está em vigor.

A vigilância significa mais segurança?

Não, a vigilância maciça demonstrou que não é eficaz. A segurança total não existe, embora obviamente os governantes não possam dizer isso, sobretudo neste momento. O que a sociedade pede ao governante é segurança absoluta, e é o que ele promete. Mas a segurança absoluta não existe. E em particular diante de grupos terroristas.

Por sua vez, a vigilância maciça, sim, existe. Comprovamos isso depois das revelações de Edward Snowden. Atualmente há instrumentos para vigiarem todos. É uma espécie de coação: eu te dou segurança total, mas permita-me que te vigie totalmente. Porque apesar de eles poderem te vigiar, em troca não vão poder garantir segurança total.

As sociedades devem aceitar essa troca?

Claro que não! Esse é todo o sentido do livro que acabo de publicar. O problema é que neste momento é muito difícil emitir críticas porque, se você as faz, aparece como um aliado dos terroristas.
Qual é a alternativa à vigilância?
A vigilância é legítima. É perfeitamente legítimo que um governo vigie. Desde que o faça de maneira democrática, ou seja, por ordem de um juiz e com um controle democrático. Se um juiz determina que uma pessoa deve ser vigiada, é preciso vigiá-la. A questão não está em opor-se a toda vigilância, o problema é que o que se pratica agora é uma vigilância maciça e clandestina. O princípio é “vigiamos todo mundo para poder, no dia de amanhã, identificar aqueles que podem cometer um atentado”. Estamos perdendo liberdades sem que isso tenha sido debatido de modo suficiente, e discutindo a questão em um marco emocional muito específico.

A França promulgou em maio uma lei que permite a interceptação e a escuta de conversas por parte dos serviços secretos, sem que haja controle judicial. E isso foi feito em meio à emoção dos atentados contra o Charlie Hebdo. Somente requer a autorização do primeiro-ministro, Manuel Valls. Mas o primeiro-ministro não é um magistrado! Não é o poder judicial. É um político, é o poder executivo.

A ferramenta para a vigilância maciça é a internet, que permite uma inspeção exaustiva de todos os nossos movimentos e conversas. Pode-se dizer que já perdemos a liberdade na web?

Quando a internet surgiu era um ambiente de liberdade porque democratizava o acesso à informação. No entanto, hoje se centralizou e 99% das empresas que usam a internet recorrem quase inevitavelmente a uma das cinco grandes empresas digitais: Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft.

Mike Mozart / Flickr CC
 'Atualmente há instrumentos para vigiarem todos. É uma espécie de coação: eu te dou segurança total, mas permita-me que te vigie totalmente', diz Ramonet

Hoje, quando você utiliza a internet está entrando por esse gargalo que permite às autoridades terem acesso a todos os seus dados, primeiro porque essas empresas os passam ao Governo dos EUA, por lei, e segundo porque os Estados puseram em marcha sistemas próprios de vigilância. Hoje é muito mais seguro enviar uma carta pelo correio do que mandar um e-mail. Ninguém vigia a carta. Entretanto, qualquer comunicação digital deixa um rastro, os metadados. Desde o lugar onde você se comunica, com quem se comunica, quanto tempo durou esse intercâmbio, quando se deu... Toda uma série de dados com os quais se pode fazer uma espécie de galáxia de todos os teus contatos e conhecimentos, um verdadeiro atlas. Sem que você saiba o que está ali.

Embora sejam feitas gravações, escutar conversas é muito complicado porque é preciso colocar alguém ali para ouvi-las. No entanto, esses dados são coletados automaticamente, de forma maciça, de todos nós.

Os EUA têm acesso direto a esses dados graças às empresas que você citou. Considera que existe um neocolonialismo na internet? Que a web, que aparenta ser aberta e supranacional, é um território controlado pelos EUA?
Está controlada por essas empresas americanas. No livro, por exemplo, publico um relatório da CIA a respeito disso, “O Mundo em 2030”. Diz que daqui até 2030 um dos perigos para os EUA é precisamente que essas cinco empresas consigam ter maior poderio em termos de informação que o próprio governo dos EUA, que a própria administração do país. Não falamos de imperialismo norte-americano, mas do domínio de empresas que efetivamente são estadunidenses.


Dominamos a tecnologia ou a tecnologia nos domina?

O problema é que hoje já não podemos prescindir da tecnologia. Sem internet seria muito difícil fazer tudo o que fazemos. A pergunta é legítima. No dia de hoje, acredito que a resposta é que a tecnologia nos domina, não podemos desconectar-nos.

Em seu livro o senhor enaltece os “lançadores de alertas”. Chama de “heróis” pessoas como Julian Assange ou Edward Snowden. No entanto, os alertas que lançaram não tocaram a sociedade, muito pouca gente tomou consciência ou modificou seus costumes.
Exato. Essa é uma realidade. Para a maioria das pessoas pouco importa o estado de vigilância, não as incomoda. A prova: do que vive o Facebook? Dos dados que nós colocamos voluntariamente, não os arranca de nós.

O que coletivamente a sociedade diz com seu comportamento é que aquele que se incomoda de ser vigiado deve ter algo que quer esconder. E se quer esconder algo é porque, como diz Assange, é um dos quatro cavaleiros do infocalipse: ou é um traficante de drogas, ou é um pedófilo, ou é um sujeito que está fugindo do fisco ou é um terrorista. Se eu não sou nenhuma dessas quatro coisas, que me importa que me vigiem, se não tenho nada a ocultar? Essa é a problemática.

O problema é quando os governos começam a fazer uso dessa informação contra você. Estamos todos nus diante disso. É a distopia de 1984. Nós, europeus, vemos isso como algo muito distante, mas é algo que já se passa no Irã e na Arábia Saudita, com governos que perseguem os dissidentes.

Nós, jornalistas, estamos fracassando na hora de comunicar esse perigo?
Acredito que não porque, embora os jornalistas tenham, talvez, maior sensibilidade, é a sociedade que não toma consciência. A sociedade não valoriza suficientemente o heroísmo de gente como Assange. Quem são as pessoas mais perseguidas do mundo? Assange, Snowden, Chelsea Manning, condenada a 30 anos de prisão por ter revelado crimes que não teria de ocultar. Assange está há três anos trancado na embaixada do Equador em Londres e Snowden está exilado na Rússia. E o que fizeram que mereça tal perseguição? Demonstrar que somos vigiados. Denunciar um atentado contra nossas liberdades.
Publicado originalmente no site Publico


quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Destruição, crime, resistencia

Rompimentos de barragens de mineradoras têm se tornado mais graves nas últimas décadas, dizem especialistas
Rachel Costa | Londres - 18/11/2015 - 06h00
Avanço tecnológico da mineração não tem conseguido reduzir intensidade de eventos como o ocorrido em Mariana (MG); evitar próximo desastre só será possível com melhor regulamentação ambiental da atividade



Itália, 1985, África do Sul, 1994, e Hungria, 2010. Estas foram as rupturas de barragem de mineradoras mais mortíferas nos últimos 30 anos em países ocidentais. A primeira deixou 268 mortos, a segunda, 17, e a última, 10 vítimas fatais. Em Minas Gerais, o rompimento da barragem de Fundão no último dia 5 em Mariana já fez 11 mortos (quatro deles ainda sem identificação) e outras 12 pessoas seguem desaparecidas. Calcula-se em 62 milhões de metros cúbicos o volume de rejeitos lançados no meio ambiente. Grande parte dele atingindo o Rio Doce, um dos maiores do estado. A chegada ao rio tem causado uma segunda tragédia, com cidades sem água e moradores sem saber o que lhes espera. Governador Valadares, um dos principais municípios abastecido pelo rio, com 278 mil habitantes, decretou estado de calamidade pública desde a última terça-feira (10/11).

Falta água e faltam informações, o que torna difícil calcular a dimensão exata do desastre. A Vale e a BHP, as duas empresas multinacionais por trás da Samarco, companhia responsável pelos reservatórios, terão de desembolsar pelo menos 1 bilhão de reais neste que é um dos maiores desastres ambientais no Brasil e um dos maiores episódios de rompimento de barragem de rejeitos nos últimos 30 anos.

Antonio Cruz / Agência Brasil
Cenário da desolação em Bento Rodrigues, distrito de Mariana (MG), após rompimento da barragem e passagem da lama

E o grande problema é que o avanço tecnológico da mineração não tem conseguido reduzir a intensidade de eventos desse tipo. Muito pelo contrário, afirma o geofísico David Chambers, doCenter For Science In Public Participation (CSP2) [Centro para a Ciência em Participação Popular, em tradução livre], nos Estados Unidos. Chambers mantém desde 2009 uma base de dados com o registro de problemas em barragens de rejeitos em todo o mundo, cobrindo todo o último século. O que se pode aferir pelos números é que, se a quantidade de eventos diminuiu com o avançar da tecnologia, em contrapartida eles se tornaram muito mais graves e a previsão do cientista é que eles sigam ocorrendo em uma média de um grande desastre a cada ano. 

Problema internacional
Na lista mantida por Chambers, o último evento classificado como grave também aconteceu no Brasil: foi a ruptura na barragem de uma mina em Itabirito, em setembro de 2014, deixando três mortos. Entretanto, o pesquisador faz questão de enfatizar que tragédias envolvendo reservatórios não estão limitadas ao país. “Quando divulguei os dados da minha pesquisa, a resposta que recebi da indústria foi de que na América do Norte isso nunca aconteceria. Seis meses depois, houve o rompimento da barragem em Mount Polley, no Canadá”, diz Chambers.

Na tragédia canadense, a maior da história desse tipo no país, não houve mortos, mas 23 milhões de metros cúbicos de rejeitos foram lançados no ambiente, atingindo reservatórios de água da região. Em agosto de 2015, um ano depois do desastre, uma equipe da Anistia Internacionalvoltou à área e encontrou moradores ainda inseguros em relação à qualidade da água, aumento nos níveis dos lagos e muitas dúvidas em relação à possível contaminação dos peixes, uma vez que havia criadores de salmão na área.
Jeremy Board / Flickr CC
Ativistas protestam contra a empresa Imperial Metals em abril deste ano no Canadá
“No caso da Imperial Metals, que operava a mina de Mount Polley, eles são uma companhia muito menor, não são um conglomerado internacional”, avalia Chambers. No Canadá, a mina onde ocorreu o desastre voltou a operar neste ano, alegadamente para a companhia ajudar a cobrir os custos ambientais do acidente causado por ela própria. “É diferente do caso brasileiro. Espero que BHP e Vale cubram os custos operacionais envolvidos. Elas são as donas da Samarco”, fala o cientista, enfatizando que usar companhias locais para fazer a exploração é um procedimento comum entre multinacionais e, portanto, não pode ser usado como pretexto para isentá-las de culpa.

Falta de dados
Durante a apuração dessa reportagem, Opera Mundi consultou três cientistas que acompanham desastres provocados por empresas mineradoras. Para todos eles, a falta de dados oficiais é um problema para definir a dimensão exata da tragédia ocorrida em Minas. Até agora, dados sobre a contaminação da água foram divulgados por Governador Valadares e Baixo Guaiú, no Espírito Santo, mostrando altos índices de alumínio, magnésio e arsênio (este último apareceu nas provas capixabas).
Fred Loureiro / Secom ES
Lama da barragem do Fundão, rompida no dia 5 de novembro, atinge o rio Doce na cidade de Resplendor (MG)
Apesar de alarmados com os índices obtidos pelas provas, os cientistas acreditam que o método usado para a coleta não foi o mais adequado. “Neste momento, o que mais importa é testar a contaminação da água”, diz Chambers. “Pelos resultados dos testes já feitos, parece que eles foram realizados sem filtrar os sedimentos”, completa o geofísico, esclarecendo que o risco maior ocorre quando os metais estão dissolvidos na água.

Sem informações exatas, fica ainda mais complicado montar o intrincado quebra-cabeças do impacto ambiental provocado pelo vazamento. Magnésio em excesso na água, por exemplo, pode afetar o desenvolvimento mental das crianças, lembra a geoquímica Kendra Zamzow, também da CSP2. Zamzow acredita que o mais provável no caso brasileiro é que os metais estejam “presos” aos sedimentos, reduzindo o risco de contaminação. Entretanto, outro problema pode ocorrer, este relacionado ao depósito dos rejeitos: a formação de uma espécie de “cimento” no leito do rio, o que pode afetar a vida dos seres vivos presentes nas águas.

“Este caso da Samarco é muito maior que o de Mount Polley. No rompimento da barragem canadense, os rejeitos se espalharam por apenas oito quilômetros. Eles poderiam ter ido mais longe, mas foram parados pelo lago de criação de salmão”, diz a geoquímica Kendra Zamzow, também da CSP2.
 
A barragem rompida em Mariana. Foto: Corpo de Bombeiros MG

Danúbio vermelho
O caso brasileiro também é maior que o ocorrido na Hungria em 2010. “A dimensão é claramente maior que a do acidente húngaro, mas a atenção da mídia internacional é muito menor”, considera William Mayes, da Universidade de Hull, no Reino Unido. Mayes participou de um estudo para avaliar a recuperação do entorno após o desastre húngaro, no qual um milhão de metros quadrados de resíduos tóxicos de uma mina de bauxita vazaram, chegando a atingir o rio Danúbio, um dos principais da Europa.

A cor vermelha dos detritos húngaros pode fazer lembrar a que invadiu o rio Doce. A sua origem, porém, é bem diferente. Mayes explica que os rejeitos da mina europeia eram altamente alcalinos, salgados e continham metais como cromo e vanádio. Em Minas, Mayes acredita que o maior problema poderá estar nas altas concentrações de arsênio.

A análise liderada pelo cientista na Hungria mostrou uma boa recuperação do meio ambiente quatro anos após o vazamento. Estima-se que US$ 136 milhões foram gastos para a recuperação da área. “Mas é muito difícil comparar os dois casos”, fala Mayes, citando a diferença de volume e da composição dos rejeitos.

Evitar o próximo desastre, acredita Chambers, só será possível com uma melhor regulamentação ambiental da atividade mineradora. As esperanças do cientista são de que países recentemente afetados e onde a mineração é uma atividade econômica importante, como é o caso do Canadá ou do próprio Brasil, tomem a dianteira nesse processo. “Se um desses países cria esses parâmetros, os outros se verão obrigados a fazer o mesmo”, acredita o cientista.

As vidas perdidas não podem ser recuperadas, é certo. O estrago feito, porém, pode em muito ser contido e revertido, desde que bem calculado, e servir de exemplo para a criação de normas que evitem a repetição de tragédias como essa. 


quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Até quando?

O homem branco
naquela fotografia
 http://www.geledes.org.br/o-homem-branco-naquela-fotografia
Categoria » Questão Racial


Ainda somos encurralados  e mortos por forças policiais e de estado. Dentro do nosso Brasil!  Nossos filhos estão a cada dia mais sob ameaça de morte. Mas a luta começou lá atrás. E Continua. E podem acreditar, não terminará tao cedo. Enquanto o egoísmo e a injustiça prevalecer não teremos paz.



Às vezes as fotografias enganam. Esta, por exemplo. Representa o gesto de rebeldia de John Carlos e de Tommie Smith no dia em que ganharam medalhas pelos 200 metros nas Olimpíadas de Verão de 1968, na Cidade do México e é certo que me enganou a mim durante muito tempo. Artigo de Ricccardo Gazzaniga.



Sempre vi a fotografia como uma imagem poderosa de dois negros descalços, com as cabeças curvadas, de punhos erguidos com luvas negras, enquanto tocava o hino nacional dos Estados Unidos. Era um forte gesto simbólico, tomando posição pelos direitos civis afro-americanos num ano de tragédias que incluíram as mortes de Martin Luther King e de Bobby Kennedy.

É uma foto histórica de dois homens de cor. Por este motivo, nunca prestei realmente atenção ao outro homem, branco como eu, imóvel, no segundo degrau do pódio de metal. Considerava-o como uma presença casual, um extra no momento de Carlos e de Smith, ou mesmo uma espécie de intruso. Com efeito, pensava mesmo que aquele sujeito – que parecia ser apenas um rival inglês – representava na sua gelada imobilidade a vontade de resistir à mudança que Smith e Carlos invocavam no seu protesto silencioso. Mas estava errado.

Graças a um velho artigo de Gianni Mura, hoje descobri a verdade: aquele branco na fotografia é, talvez, o terceiro herói daquela noite de 1968. Chamava-se Peter Norman, era um australiano que tinha chegado às finais dos 200 metros depois de ter corrido uns extraordinários 20.22 nas semi-finais. Só os dois americanos Tommie Smith“O Jacto” e John Carlos tinham feito melhor: 20.14 e 20.12, respectivamente.

Parecia como se a vitória tivesse de ser decidida entre os dois americanos. Norman era um velocista que parecia estar a ter uns bons momentos. John Carlos, anos mais tarde, disse que lhe perguntaram o que tinha acontecido àquele baixote branco de 5’6” de altura e que corria tão rápido quanto ele e Smith, ambos mais altos do que 6’2”.
Chega a hora das finais e o outsider Peter Norman faz a corrida de uma vida, de novo melhorando os seus tempos. Termina a corrida a 20.06, a sua melhor marca de sempre, um recorde australiano que ainda continua de pé, 47 anos depois.
Mas esse recorde não foi suficiente, porque Tommie Smith era verdadeiramente “O Jacto” e respondeu ao recorde australiano de Norman com um recorde mundial. Em suma, foi uma grande corrida.
Contudo, essa corrida nunca seria tão memorável como aquilo que se seguiu na cerimónia de entrega das medalhas.
Não demorou muito depois da corrida para se compreender que algo de grande, sem precedentes, estava prestes a acontecer no pódio de metal. Smith e Carlos decidiram que queriam mostrar a todo o mundo como era a sua luta pelos direitos humanos e a palavra espalhou-se entre os atletas.
Norman era um branco natural da Austrália, um país que tinha leis de apartheid rigorosas, quase tão rígidas como as da África do Sul. Havia tensão e protestos nas ruas da Austrália na sequência de pesadas restrições a imigração não-branca e a leis discriminatórias contra os aborígenes, algumas das quais consistiam em adopções forçadas de crianças nativas a famílias brancas.

Os dois americanos tinham perguntado a Norman se ele acreditava nos direitos humanos. Norman disse que sim. Perguntaram-lhe se acreditava em Deus e ele, que tinha estado no Exército da Salvação, disse que acreditava firmemente em Deus. “Sabíamos que aquilo que iamos fazer era de longe maior que qualquer feito atlético e ele disse: “Estou com vocês” recorda John Carlos, “Esperava ver receio nos olhos de Norman, mas em vez disso vimos amor.”

Smith e Carlos tinham decidido levantar-se no estádio usando o emblema do Projecto Olímpico para os Direitos Humanos, um movimento de atletas que apoiava a luta pela igualdade.

Iriam receber as suas medalhas, descalços, representando a pobreza vivida pelos negros. Iriam calçar as famosas luvas pretas, símbolo da causa dos Panteras Negras. Mas antes de subirem ao pódio perceberam que só tinham um par de luvas. “Calce cada um uma luva” sugeriu Norman. Smith e Carlos aceitaram o conselho.

Mas então, Norman fez ainda mais. “Acredito naquilo que vocês acreditam. Têm um desses para mim?” perguntou ele apontando para o emblema do Projecto Olímpico para os Direitos Humanos no peito dos outros. “Desse modo, posso mostrar o meu apoio à vossa causa.” Smith admitiu que ficou atónito e que pensou: “Quem é este fulano branco australiano? Ganhou uma medalha de prata, não lhe chega recebê-la e pronto?”

Smith respondeu que não, também porque não queria deixar de usá-lo. Aconteceu que com eles estava um remador americano branco, Paul Hoffman activista do Projecto Olímpico para os Direitos Humanos. Depois de ouvir tudo aquilo, pensou “se um branco australiano me viesse pedir um emblema do Projecto Olímpico para os Direitos Humanos, por Deus, claro que lho daria!” Hoffman não hesitou “Dei-lhe o único que tinha, o meu”.

Os três avançaram pelo campo e subiram ao pódio: o resto é história, preservada pelo poder da fotografia. “Eu não podia ver o que estava a acontecer,” conta Norman, “[mas] tinha sabido que eles tinham levado avante os seus planos quando uma voz na multidão cantou o hino americano, mas depois se calou. O estádio emudeceu”.

O chefe da delegação Americana jurou que estes atletas iriam pagar enquanto vivessem por esse gesto, um gesto que ele pensava não tinha nada a ver com o desporto. Smith e Carlos foram imediatamente suspensos da equipa olímpica americana e expulsos da aldeia olímpica, enquanto que o remador Hoffman foi acusado de conspiração.

Uma vez em casa, os dois homens mais rápidos do mundo enfrentaram pesadas consequências e ameaças de morte.


Mas, no fim, o tempo provou que eles tinham tido razão e tornaram-se campiões na luta pelos direitos humanos. Com a sua imagem restabelecida, colaboraram com a equipa americana de atletismo, tendo sido erigida uma estátua deles na San Jose State University. Peter Norman não está nesta estátua. A sua ausência do pódio parece o epitáfio de um herói em quem ninguém nunca reparou. Um atleta esquecido, apagado da história mesmo na Austrália, o seu país.

Quatro anos mais tarde, nas Olimpíadas de Verão de 1972, em Munique, na Alemanha, Norman não fez parte da equipa de velocistas australianos, apesar de se ter qualificado treze vezes para os 200 metros e cinco vezes para os 100 metros.

Norman deixou o atletismo de competição depois deste desapontamento, continuando a correr ao nível amador.

Na sua Austrália branqueada, resistindo à mudança, ele foi tratado como um estranho, a sua família foi proscrita e incapaz de arranjar trabalho. Trabalhou uns tempos como professor de ginástica, continuando a lutar contra as desigualdades como sindicalista e trabalhando ocasionalmente num talho. Devido a um ferimento, Norman contraiu gangrena que levou a problemas de depressão e alcoolismo.

Como John Carlos disse “Se nós fomos espancados, Peter enfrentou um país inteiro e sofreu sozinho.” Durante anos, Norman só teve uma oportunidade de se salvar: foi convidado a condenar o gesto dos seus colegas atletas John Carlos e Tommie Smith em troca de um perdão do sistema que o ostracizou.

Um perdão que lhe teria permitido arranjar um emprego estável no Comité Olímpico Australiano e fazer parte da organização dos Jogos Olímpicos de Sydney 2000. Norman nunca cedeu e nunca condenou a escolha dos dois americanos.

Ele foi o maior velocista australiano da história e o detentor do recorde dos 200 metros, contudo nem sequer foi convidado para as Olimpíadas de Sydney. Foi o Comité Olímpico americano, quando soube da notícia, que lhe pediu que se juntasse ao seu grupo e o convidou para a festa de aniversário do campeão olímpico Michael Johnson para quem, Peter Norman era um exemplo e um herói.


Norman morreu repentinamente de ataque cardíaco em 2006 sem que o seu país alguma vez lhe tivesse pedido desculpa pela maneira como o tratara. No seu funeral, Tommie Smith e John Carlos, amigos de Norman desde aquele momento em 1968, e que o tinham como herói carregaram o seu caixão.

“Peter foi um soldado solitário. Escolheu, conscientemente, ser um cordeiro do sacrifício em nome dos direitos humanos. Não há mais ninguém senão ele que a Austrália devia honrar, reconhecer e apreciar” disse John Carlos.

“Ele pagou o preço com a sua escolha,” explicou Tommie Smith. “ Não foi apenas um simples gesto para nos ajudar, foi a SUA luta. Foi um branco, um homem branco australiano entre dois homens de cor, levantando-se no momento da vitória, todos em nome da mesma coisa.”

Só em 2012 o Parlamento australiano aprovou uma moção pedindo formalmente desculpa a Peter Norman e dedicando-lhe um lugar na história com esta declaração:
Esta Câmara “reconhece os extraordinários êxitos atléticos do falecido Peter Norman que ganhou a medalha de prata na corrida de 200 metros nas Olimpíadas da Cidade do México de 1968 num tempo de 20.06 segundos, que ainda se mantém como recorde australiano.”

“Reconhece a coragem de Peter Norman, ao ostentar no pódio um emblema do Projecto Olímpico para os Direitos Humanos, em solidariedade com os atletas afro-americanos Tommie Smith e John Carlos, que fizeram a saudação do “poder negro”.”

“Pede desculpa a Peter Norman pelo mal feito pela Austrália em não o mandar às Olimpíadas de Munique de 1972, apesar de repetidamente se ter qualificado e tardiamente reconhece o poderoso papel desempenhado por Peter Norman na prossecução da igualdade racial.”

Contudo, as palavras que melhor nos lembram Peter Norman são simplesmente as suas próprias palavras ao descreverem os motivos do seu gesto, no documentário “Salute” escrito, dirigido e produzido pelo seu sobrinho Matt.

“Não podia ver por que razão um negro não podia beber a mesma água de uma fonte, apanhar o mesmo autocarro ou ir à mesma escola que um branco. Havia uma injustiça social contra a qual nada podia fazer a partir de onde estava, mas que detestava. Foi dito que ter partilhado a minha medalha de prata com aquele incidente no estrado da vitória diminuiu o meu desempenho. Pelo contrário. Tenho de confessar que fiquei muito orgulhoso por fazer parte dele.”


Quando mesmo hoje parece que a luta pelos direitos humanos e pela igualdade nunca acaba e que vidas inocentes são sacrificadas, temos de recordar as pessoas que fizeram sacrifícios como Peter Norman e tentar seguir o seu exemplo. A igualdade e a justiça não são lutas de uma única comunidade, mas de todos.

Assim, este Outubro quando estiver em San Jose, vou visitar a estátua do Poder Negro Olímpico no campus de San Jose State University e aquele degrau vazio no pódio recordar-me-á um herói esquecido, mas verdadeiramente corajoso, Peter Norman.

Tradução de Almerinda Bento para esquerda.netqq