Ignacio Ramonet: em troca de suposta segurança,
sociedade admite estado de vigilância maciço
Carlos
del Castillo | Madri| Publico - 27/11/2015 - 06h00
Jornalista adverte
que ‘sociedade não tomou consciência’ da ameaça que a vigilância maciça
representa, apesar dos alertas de Assange e Snowden; 'hoje é mais seguro enviar
carta pelo correio do que por e-mail, ninguém vigia carta', afirma
Ignacio Ramonet dirigiu durante 18
anos Le Monde Diplomatique, um dos órgãos de imprensa de maior
prestígio no mundo e principal tribuna do movimento altermundialista. Enraizado
na França, esse jornalista espanhol que atualmente dirige LeMondeDiplo,
a versão espanhola da citada publicação mensal, analisa como o Governo do
presidente francês François Hollande aprova um corte de liberdades e a
prorrogação por três meses do estado de emergência, tentando fortalecer a capacidade
de suas forças de segurança.
Para o autor de El Imperio de
la Vigilancia, Ediciones Galileo (O Império da Vigilância), os governos
“não podem garantir a segurança total”. No entanto, “o estado de emergência
implica o abandono das liberdades democráticas e republicanas”, ao mesmo tempo
que “hoje em dia há instrumentos para vigiar todos”. Uma vigilância que, além
do mais, “é ineficaz”. É a tese de Ramonet em seu novo livro, transformado
quase em premonição, pois foi publicado na quinta-feira, 12 de novembro. Um dia
depois ocorreram os atentados jihadistas que levaram a “intimidada” sociedade
francesa a não criticar as medidas propostas por Hollande. Para Ramonet, é um
erro.
Publico:
A sociedade francesa, que tradicionalmente defende seus direitos com tenacidade,
aceitará ter menos liberdade em troca de mais segurança?
Ignacio Ramonet: Estamos
no momento mais emotivo. Os atentados ocorreram na sexta-feira passada [13/11],
e a partir daí foram sendo conhecidos os detalhes do que aconteceu, com os depoimentos
de gente que viveu um inferno. Neste momento, o Estado pode pedir praticamente
o que quiser à sociedade, e ela está em condições de lhe outorgar.
Agência Efe
Chanceler alemã, Angela Merkel, presidente francês,
François Hollande, e prefeita de Paris, Anne Hidalgo, participam de homenagem
às vítimas dos atentados realizados pelo EI
Acabamos
de ver como o presidente conseguiu uma união nacional em plena campanha para as
eleições de 6 de dezembro. Conseguiu aprovar uma série de medidas, algumas
delas propostas pela direita, em meio a um unanimismo geral. Quando ocorrem
monstruosidades como a de Paris, as sociedades se intimidam. Quase não houve
críticas à prorrogação do estado de emergência, que representa um abandono das
liberdades democráticas e republicanas. No meu livro falo do que se passou depois
do 11 de Setembro, quando os EUA promulgaram o Ato Patriótico, com essa mesma
ideia, um contrato com os cidadãos: aceitem perder um pouco de vossas liberdades
e eu lhes vou garantir maior segurança. O problema é que o Ato Patriótico ainda
está em vigor.
A vigilância significa mais
segurança?
Não, a vigilância maciça demonstrou que não é eficaz. A segurança total não existe, embora obviamente os governantes não possam dizer isso, sobretudo neste momento. O que a sociedade pede ao governante é segurança absoluta, e é o que ele promete. Mas a segurança absoluta não existe. E em particular diante de grupos terroristas.
Por
sua vez, a vigilância maciça, sim, existe. Comprovamos isso depois das
revelações de Edward Snowden. Atualmente há instrumentos para vigiarem todos. É
uma espécie de coação: eu te dou segurança total, mas permita-me que te vigie
totalmente. Porque apesar de eles poderem te vigiar, em troca não vão poder
garantir segurança total.
As sociedades devem aceitar essa
troca?
Claro
que não! Esse é todo o sentido do livro que acabo de publicar. O problema é que
neste momento é muito difícil emitir críticas porque, se você as faz, aparece como
um aliado dos terroristas.
Qual
é a alternativa à vigilância?
A
vigilância é legítima. É perfeitamente legítimo que um governo vigie. Desde que
o faça de maneira democrática, ou seja, por ordem de um juiz e com um controle
democrático. Se um juiz determina que uma pessoa deve ser vigiada, é preciso
vigiá-la. A questão não está em opor-se a toda vigilância, o problema é que o
que se pratica agora é uma vigilância maciça e clandestina. O princípio é
“vigiamos todo mundo para poder, no dia de amanhã, identificar aqueles que
podem cometer um atentado”. Estamos perdendo liberdades sem que isso tenha sido
debatido de modo suficiente, e discutindo a questão em um marco emocional muito
específico.
A
França promulgou em maio uma lei que permite a interceptação e a escuta de conversas
por parte dos serviços secretos, sem que haja controle judicial. E isso foi
feito em meio à emoção dos atentados contra o Charlie Hebdo.
Somente requer a autorização do primeiro-ministro, Manuel Valls. Mas o
primeiro-ministro não é um magistrado! Não é o poder judicial. É um político, é
o poder executivo.
A
ferramenta para a vigilância maciça é a internet, que permite uma inspeção exaustiva
de todos os nossos movimentos e conversas. Pode-se dizer que já perdemos a
liberdade na web?
Quando
a internet surgiu era um ambiente de liberdade porque democratizava o acesso à
informação. No entanto, hoje se centralizou e 99% das empresas que usam a
internet recorrem quase inevitavelmente a uma das cinco grandes empresas
digitais: Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft.
Mike Mozart / Flickr CC
'Atualmente há instrumentos para vigiarem todos. É uma espécie de coação:
eu te dou segurança total, mas permita-me que te vigie totalmente', diz Ramonet
Hoje, quando você utiliza a internet
está entrando por esse gargalo que permite às autoridades terem acesso a todos
os seus dados, primeiro porque essas empresas os passam ao Governo dos EUA, por
lei, e segundo porque os Estados puseram em marcha sistemas próprios de vigilância.
Hoje é muito mais seguro enviar uma carta pelo correio do que mandar um e-mail.
Ninguém vigia a carta. Entretanto, qualquer comunicação digital deixa um
rastro, os metadados. Desde o lugar onde você se comunica, com quem se
comunica, quanto tempo durou esse intercâmbio, quando se deu... Toda uma série
de dados com os quais se pode fazer uma espécie de galáxia de todos os teus
contatos e conhecimentos, um verdadeiro atlas. Sem que você saiba o que está ali.
Embora sejam feitas gravações,
escutar conversas é muito complicado porque é preciso colocar alguém ali para
ouvi-las. No entanto, esses dados são coletados automaticamente, de forma
maciça, de todos nós.
Os
EUA têm acesso direto a esses dados graças às empresas que você citou. Considera
que existe um neocolonialismo na internet? Que a web, que aparenta ser aberta e
supranacional, é um território controlado pelos EUA?
Está controlada por essas empresas
americanas. No livro, por exemplo, publico um relatório da CIA a respeito
disso, “O Mundo em 2030”. Diz que daqui até 2030 um dos perigos para os EUA é
precisamente que essas cinco empresas consigam ter maior poderio em termos de
informação que o próprio governo dos EUA, que a própria administração do país.
Não falamos de imperialismo norte-americano, mas do domínio de empresas que
efetivamente são estadunidenses.
Dominamos a tecnologia ou a
tecnologia nos domina?
O
problema é que hoje já não podemos prescindir da tecnologia. Sem internet seria
muito difícil fazer tudo o que fazemos. A pergunta é legítima. No dia de hoje,
acredito que a resposta é que a tecnologia nos domina, não podemos
desconectar-nos.
Em
seu livro o senhor enaltece os “lançadores de alertas”. Chama de “heróis”
pessoas como Julian Assange ou Edward Snowden. No entanto, os alertas que lançaram
não tocaram a sociedade, muito pouca gente tomou consciência ou modificou seus
costumes.
Exato.
Essa é uma realidade. Para a maioria das pessoas pouco importa o estado de vigilância,
não as incomoda. A prova: do que vive o Facebook? Dos dados que nós colocamos
voluntariamente, não os arranca de nós.
O
que coletivamente a sociedade diz com seu comportamento é que aquele que se
incomoda de ser vigiado deve ter algo que quer esconder. E se quer esconder
algo é porque, como diz Assange, é um dos quatro cavaleiros do infocalipse: ou
é um traficante de drogas, ou é um pedófilo, ou é um sujeito que está fugindo
do fisco ou é um terrorista. Se eu não sou nenhuma dessas quatro coisas, que me
importa que me vigiem, se não tenho nada a ocultar? Essa é a problemática.
O
problema é quando os governos começam a fazer uso dessa informação contra você.
Estamos todos nus diante disso. É a distopia de 1984. Nós, europeus, vemos isso
como algo muito distante, mas é algo que já se passa no Irã e na Arábia
Saudita, com governos que perseguem os dissidentes.
Nós,
jornalistas, estamos fracassando na hora de comunicar esse perigo?
Acredito
que não porque, embora os jornalistas tenham, talvez, maior sensibilidade, é a
sociedade que não toma consciência. A sociedade não valoriza suficientemente o
heroísmo de gente como Assange. Quem são as pessoas mais perseguidas do mundo?
Assange, Snowden, Chelsea Manning, condenada a 30 anos de prisão por ter revelado
crimes que não teria de ocultar. Assange está há três anos trancado na embaixada
do Equador em Londres e Snowden está exilado na Rússia. E o que fizeram que
mereça tal perseguição? Demonstrar que somos vigiados. Denunciar um atentado contra
nossas liberdades.
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