ESTAMOS MUITO PERTO DE
FAZER PARAPLEGICOS VOLTAR A ANDAR
Escrito
por Guilherme Pavarin - http://motherboard.vice.com/pt_br/read/diz-nicolelis
"Foi
um ano muito louco", disse Miguel Nicolelis, entre duas longas arfadas, à
beira de uma mesa na sede do Projeto Andar de Novo, no bairro da Vila Madalena,
em São Paulo, numa tarde recente. O neurocientista brasileiro de 54 anos não
escondia o cansaço. "Coréia, Alemanha, Estados Unidos", continuou.
"Viajei muito."
De
olheiras fundas e fala ágil, Nicolelis nos recebia para tratar dos resultados
do projeto que visa reabilitar pessoas paraplégicas por meio de um exoesqueleto
e um capacete conectado ao cérebro. A ideia do encontro era buscar atualizações
do plano. E também dados. Afirmativas. Intenções.
Fazia
mais de um ano que o primeiro chute com a tecnologia havia sido dado na
abertura da Copa do Mundo e, desde então, quase nada se falou sobre a evolução
dos estudos. De lá para cá, não foram poucos os colegas que, para a ira do
neurocientista, criticaram a falta de resultados do consórcio milionário – só
para a Copa do Mundo, o Projeto Andar de Novo arrecadou R$ 33 milhões.
"Não
posso dar muitos detalhes dos estudos antes de publicá-los", falou o
cientista, logo no início da conversa. "É um processo longo,
demorado."
Ao
pegar uma folha sulfite para explicar os fundamentos do cérebro, porém, o
neurocientista deu valiosas pistas sobre o futuro de sua pesquisa. Ele falou
sobre o que falta para seus pacientes voltarem a andar, tratou do mercado, das
polêmicas que envolvem a implantação de eletrodos no cérebro e, por fim,
discorreu sobre como é impossível máquinas imitarem o mais complexo órgão
humano.
De
bom humor, Nicolelis também papeou sobre a história da neurociência, falou de
experimentos com macacos, matemática, cobertura jornalística, futebol (tivemos
que cortar na edição, o cara é um fanático) e filmes de ficção científica (também
preferimos deixar de fora – ele detesta as licenças poéticas de Hollywood e, no
papel de severo crítico cinematográfico, causaria revolta em muitos leitores.
Exemplo: "Interestelar?
Sofrível.").
Motherboard:
Bom, já que estamos aqui rodeado de exoesqueletos, vamos falar do Andar de
Novo. Faz um ano que rolou o chute na abertura da Copa. A quantas anda o
projeto?
Miguel
Nicolelis: O
projeto continua. Pacientes seguem treinando e todo o pessoal daqui trabalha
nas questões clínicas, computacionais, neurobiológicas. Descobrimos múltiplos
aspectos de como o cérebro lida com a geração de movimentos. E como o feedback
que a gente usou – rico, tátil e visual – influencia o modelo interno que o
cérebro tem do corpo. Essa é uma das grandes descobertas que tivemos no
projeto. O senso de ser. Modificamos o senso de ser e reintroduzimos o conceito
de ter pernas. Quando começamos, pedíamos aos pacientes paraplégicos para que
eles pensassem em andar e registrávamos a atividade cerebral. Não acontecia
nada. Não tinha nenhuma modulação da atividade cerebral. Quando pedíamos para
eles mexerem as mãos, só pensar, sem mexer, víamos que o cérebro estava
realizando uma operação interna para imaginar e gerar o movimento. Foram
precisos muitos meses para que víssemos uma modulação no cérebro dos pacientes
quando pedíamos para imaginarem o movimento das pernas. Então reintroduzimos
esse conceito dentro do cérebro, o que ninguém tinha documentado ainda.
O
Juliano, o paciente que deu o chute na abertura da Copa, continua aqui com
vocês?
Sim.
O Juliano está treinando para as Paraolimpíadas. Os tempos dele têm melhorado demais.
Ele é uma pessoa impressionante. Muito calmo. Possui uma capacidade de concentração
muito grande. Talvez por isso tenha sido escolhido. Ele consegue modular a atividade
cerebral como ninguém. Tem uma capacidade enorme de concentração. Ele conseguiu,
e depois outros pacientes também, controlar os dois hemisférios simultaneamente
e modulando esquerda e direita como ninguém tinha mostrado. Também somos caso
único na questão do tempo de uso. Nos outros exemplos de interface
cérebro-máquina em humanos usando eletroencefalograma (EEG) ou implantes, as
pessoas usaram alguns dias e publicaram. Em um trabalho que saiu na Science dias atrás,
um cara usa interface no lóbulo posterior para controlar o braço robótico em
humanos. Não são usos agudos. Foram adotados por dois, três dias. Temos
pacientes usando durante um ano e meio a interface cérebro-maquina. As
adaptações que estamos vendo são muito diferentes do uso agudo.
Miguel
Nicolelis apoiado em um dos vários exosesqueletos no centro do Projeto Andar de
Novo em São Paulo. Crédito: Felipe Larozza/ VICE
Quais
são os efeitos do uso agudo nos pacientes?
Não
posso dar detalhes antes de publicarmos os estudos, mas existe o dado
fundamental que é a análise psicológica ao longo do tempo. Alguns chegaram com
quadro depressivo e tiveram melhora clínica global. O fato de andar uma hora
por dia algumas vezes por semana transformou a fisiologia desses pacientes,
melhorou função peristáltica, melhorou fisiologia cardiovascular, massa
muscular e teve progresso neurológico, o que era inesperado. Será descrito nos
trabalhos. Quando pudermos contar será emocionante, chocante. Tivemos
reativação de vias neurológicas que não prevíamos ter melhora. É o grande resultado
clinico do projeto.
E
qual o próximo passo? Publicar os estudos?
Continuamos
trabalhando intensamente com a mesma confluência de ciência da computação,
engenharia, neurobiologia e reabilitação clinica. O primeiro passo é, sim,
publicar tudo que estamos escrevendo. São vários trabalhos sendo finalizados.
Um deles foi publicado nos EUA, no início do Andar de Novo. Era um macaco
controlando uma cadeira de rodas com pensamento via telemetria, Wi-Fi e sem
cabos. Tá em revisão.
O
quanto esse experimento com macacos ajuda na pesquisa com humanos?
Descobrimos
que o que ocorre com macacos é muito parecido no ser humano. O macaco tinha que
imaginar dois vetores, o vetor de velocidade rotacional e o vetor de velocidade
translacional, sair de um ponto e achar a recompensa – uma uva. Ele via as uvas
caindo no prato e tinha que imaginar uma trajetória e fazer as cadeiras de
rodas chegar no lugar certo, sem se mexer. Eles fazem. Em três dias eles passam
a dirigir a cadeira. Eles acham a solução. E, conforme o tempo passava, começou
a emergir no cérebro desses macacos a distância que faltava pra chegar no alvo.
Isso não existia antes do treinamento. Sugere que, quando você coloca um
primata num loop fechado de treinamento, o cérebro gera propriedades
necessárias para realizar a tarefa. Descobrimos que é muito parecido no ser humano.
É muito pertinente às estratégias de treinamento que usamos aqui.
Dá
para estimar o que foi feito da Copa até aqui?
Dá,
dá para estimar. Está tudo nos papers. Quando sair, te mando detalhes, não
posso abrir.
Mas
dá pra estimar o quão distante estamos de fazer com que os paraplégicos possam
voltar a andar?
Estamos
muito perto. É uma questão de engenharia nesse momento. A questão neurocientifica
está basicamente resolvida. O que mais fiquei satisfeito foi descobrir que a
parte de neurociência, os dados finais que estamos mandando e publicaremos, vão
criar uma nova visão de reabilitação. Um novo processo. Os problemas pela
frente, na minha opinião, são de engenharia: transformar todos esses conceitos
e protótipos de tecnologia em produtos que possamos adquirir a preços módicos.
Então agora a reabilitação é um problema da
indústria?
De certa forma, sim. Por exemplo: quando falei na
Alemanha em junho, no Maks Planck Institute, existe lá, em paralelo, uma rede
do instituto, a Banhoffen, que transforma protótipos em produtos. Lá tem
tecnólogos, cientistas e engenheiros especializados em criar produtos
completos. Esse instituto foi criado para criar novos produtos de engenharia de
várias áreas de conhecimento. Que eu conheço, olha, tem governos de Suíça,
França, Alemanha e Japão interessados nesse campo. Nos EUA é a iniciativa
privada; várias empresas que faziam exoesqueletos agora estão usando interface
cérebro-maquina nos exoesqueletos que tinham.
E o que mais vocês descobriram em relação às
mudanças do cérebro do paciente com interface cérebro-máquina?
Não posso dizer antes de publicar. Se alguém
divulga o que fazemos, tiram o trabalho de consideração. Posso falar que as
mudanças são impressionantes.
Poxa.
O que posso contar – porque está para sair – é o
trabalho da BrainNet. São três macacos que fundiram seus cérebros mentalmente
para jogar um jogo, que é um braço em 3 dimensões que tem que atingir alvos
aleatórios, que você põe no momento. O macaco nunca viu aquele alvo. A direção
do que ele tem que fazer. E um macaco sozinho não consegue fazer porque é um
movimento tridimensional. São coordenadas X, Y e Z. E cada um tem controle
apenas sobre uma dessas dimensões. Tem que ter pelo menos aliado. Então
colocamos juntos e eles sincronizam os cérebros. Eles criam um novo cérebro que
soluciona a trajetória em tempo real. A hora que esse sair vai ser a primeira
demonstração da BrainNet do jeito que concebi quando escrevi meu livro (Muito
Além do Nosso Eu, Companhia das Letras, de 2011). Agora está demonstrado.
Temos ideias de como fazer isso para reabilitação com conceito da BrainNet, o
EEG, não-invasivo. Vamos unir cérebros: um cérebro de alguém com deficiência e
dois ou mais normais que colaborarão para o treinamento ser mais rápido. Isso
ainda vamos testar, mas o trabalho sai em breve.
Legal você falar do método não-invasivo. Na época
dos preparativos para o chute muitas dúvidas foram levantadas sobre a eficácia
dele, certo?
Olha, foi uma fabricação tão chula da realidade,
uma ignorância. O EEG, criado pelo Hans Berger, é o método mais robusto de
diagnóstico cerebral que temos para atividade cerebral. É melhor que
ressonância nuclear magnética. A grande vantagem do EEG é que não precisa
penetrar. Põe um capacete e pronto. Dá para usar até com wi-fi. Hoje os
aparelhos são tão sensíveis que não precisam de gel condutor ou raspar buracos
no cabelo. Dá para ter uma visão do campo elétrico do cérebro de fora do
crânio. Mas o campo eletrônico, assim como magnético, é tão pequeno que, quando
vem de dentro para fora, o osso cria barreira e o sinal vem menor. Perde
resolução espacial. Mistura um monte de neurônio no sinal. Quando você entra no
cérebro, o que desenvolvi nesses 30 anos, a resolução espacial é maior. Você vê
com mais nitidez. É como olhar uma pintura de pertinho e a Monalisa de 50
metros. Todavia, tem informações nos dois sinais. O que previ antes, e continuo
defendendo, é que para criar movimentos finos, como tocar violino, precisa
entrar no cérebro. O EEG não tem resolução suficiente. Para andar, não. Esse
comando – andar, virar direita, esquerda – não precisa de uma resolução tão
grande. Para que submeter cirurgia, risco cirúrgico, se pode captar o sinal de
fora? Houve alguém que publicou em um jornal decadente que EEG é uma técnica de
80 anos atrás. Sim, claro, mas é a mais usada do mundo. Todo hospital que quer
diagnosticar distúrbios funcionais e todo neurocirurgião que vai retirar foco
epiléptico faz EEG. Automóvel tem 100 anos e quem disse que é ultrapassado?
Tudo você aperfeiçoa, claro. Faltou noção de ciência. Infelizmente aqui existem
comentários que parecem jogo de futebol. Não mudei de opinião: se quiser
restituir os movimentos por completo, é preciso operar alguém; mas para andar é
capaz de dar certo com EEG. E deu.
"O universo é fichinha perto
do cérebro."
Você já falou que é difícil ter autorização para
implantar tecnologias dentro do cérebro no Brasil. O que muda se usar a
tecnologia invasiva? As pesquisas são mais profundas?
Nos Estados Unidos já está liberado. Usamos em
macaco, braços, pernas, dois braços simultâneos. Mas os três casos clínicos com
humanos são problemáticos. Antes, em 2004, testamos com 11 pacientes de
Parkinson o procedimento intraoperatório e conseguimos reproduzir resultados
semelhantes: eles atingiam alvos com o movimento dos braços, mas não dos dedos.
Dos três casos com humanos publicados por outros pesquisadores, um deu certo e
dois não, mas em um período muito curto. A tecnologia não dura, os eletrodos
utilizados são rígidos no cérebro. Em 2006, falaram que relatariam nos próximos
anos resultados da observação desses pacientes, e nunca mais saiu uma linha
sobre isso – a empresa que bancava a pesquisa faliu, inclusive.
O método invasivo não está muito evoluído então...
Acho que até agora não usamos método invasivo no
limite. Eletrodos rígidos te dão 10, 15, 30 neurônios. Filamentos dão 2 mil,
mas não usamos em seres humanos ainda. Como FDA (Food and Drug Administration,
órgão americano responsável pela administração) aprovou, pensamos em usar em
pacientes terminais da doença ELA (Esclerose Lateral Amiotrófica), que não têm
musculatura nenhuma funcionando, que já estão com respirador, para comunicação.
Também precisamos ver como usaremos a interface wireless, o que é outro
problema. Não faz sentido implantar antes de ter wireless. Se deixar cabo
saindo da cabeça, o risco meningite é enorme. Estafilococos crescem nos cabos e
seguem caminho, que acabam no cérebro. Nosso novo implante é fechado; um chip
fechado no osso. Tem só uma antena e fica como um fio de cabelo. Há macacos com
sete anos de implante. Ainda está registrando. Tem uma queda lenta dos sinais,
mas ainda segura. Uma ponte de safena, para ser legal, tem que durar dez anos.
Tem gente que tá na terceira, que trocou a ponte da ponte da ponte. Esse é
nosso benchmark. Dez anos é um período razoável para procedimento seguro. Com
sete, macacos estão vivos; se atingirmos dez anos, chegamos ao nível da ponte
de safena.
Pra que serviria essa interface wireless dentro dos
cérebros de pacientes terminais?
Serviria para tudo. E não precisa ser paciente
terminal. Vamos começar com eles para justificar eticamente. Mais pra frente
quadriplégicos, pacientes com ELA e outros quadros poderão usar essa interface
cérebro-máquina para contar como está sentindo, para controlar TV, a cadeira de
rodas, o computador, ler e-mail. Macacos já vivem ambientes abertos onde
controlam várias coisas mentalmente. Estamos estudando para entender como os macacos
reagem depois de algum tempo.
E houve alteração no corpo nos macacos?
Até agora não. O que houve foi alteração cerebral.
Cada vez que uma interface de máquina interage num loop fechado, esses
artefatos são assimilados pelo cérebro como extensão do corpo. É quase como a
relação entre tenistas e raquetes de tênis. Grandes tenistas não batem com
raquete, batem com extensão do braço.
Uma coisa meio ciborgue.
...
Você escreveu no Muito Além do Nosso Eu que,
no futuro, nos comunicaremos apenas com os cérebros. Uma espécie de rede social
do pensamento. Depois desse experimento com macaco, a tendência fica mais
evidente, não?
Ficou mais evidente. Tem quatro papers agora de
cérebro-cérebro com dois seres humanos. É uma demonstração binária, bem
simples. Basicamente o sujeito registra vê uma coisa e decide transmitir algo
por Estimulação Transcraniana Magnética. Via EEG. Por exemplo: ele vê algo,
manda sinal, dá um pulso magnético e, de acordo com isso, decide se é A ou B.
Igual já fizemos com ratos. Nosso próximo experimento vai ser bem diferente.
Será revisado um trabalho com 4 ratos em um sistema fechado se comunicando. Funciona
quase como computador biológico. A informação se espalha nessa rede. São dois
bits de informação: pressão e temperatura, saídas, se vai chover ou não. Esse
baratinho computa com 70% de certeza. Está na revisão também.
Como os ratos conseguem se comunicar entre si por
essa rede?
Eles estão conectados eletricamente. Então a
atividade passa para esse, para esse, para esse, ai achamos uma fórmula para
obter um resultado. Eles convergem como um todo. E a performance dessa
BrainNet, invariavelmente, é maior do que cada rato original.
Como seria com humanos?
Se eu te contar agora, o Google amanhã faz. Essa
vou fazer eu primeiro. É impressionante. Falo um troço, amanhã abro o jornal e
tem alguém do Google planejando.
O neurocientista em explicações. Crédito: Felipe
Larozza/ VICE
No seu novo livro, Cérebro Relativístico, você fala que nosso
cérebro não pode ser simulado por uma máquina.
Isso.
É um balde de água fria em muita gente que crê que
a inteligência artificial nos imitará e, depois, nos superará. O que torna
nosso cérebro impossível de reproduzir?
O cérebro humano não tem engenheiro. Nada que vem
do nosso cérebro teve criador do ponto de vista de engenharia. Qualquer coisa
que podemos construir é computável. O martelo, o carro, o avião. Se passou por
engenharia, possui algoritmo e é serial. É sempre assim. Mesmo os computadores paralelos usam algoritmo serial. A
máquina de Turing necessita de algoritmo. Você reduz um fenômeno a uma
sequência de passos que aceitam uma lógica binaria. O cérebro humano não foi
construído. Ele evoluiu. É a solução ideal para um processo de milhões de anos,
como diz o biológo Stephen Jay Gould. Ele define a evolução como fita da vida.
Se pegar essa fita hoje, com nós aqui nesse ponto, e rebobinarmos e soltarmos
de novo, nunca estaríamos aqui. Para estar aqui de novo, a sequência de eventos
que precisaria ocorrer é inestimável. É impossível num processo aleatório.
A dificuldade de imitar o cérebro se deve então ao
fato de mudarmos a todo instante?
Também. O cérebro humano não tem código. Está em
transformação o tempo inteiro. Durante essa nossa conversa o cérebro está de um
jeito que nunca vai se repetir. Cada evento da vida cotidiana altera a
representação do mundo que o cérebro tem. Então não tem como voltar atrás, não
tem como explicar olhando para o que era. Quando você tenta medir, já mudou. É
o sistema mais complexo que existe. Físicos entraram na neurociência achando
que iam explicar tudo e quebraram a cara. Eles explicam sistemas
não-adaptativos, não-complexos. Estudar partículas atômicas é lindo,
maravilhoso, mas não tem nada a ver com estudar sistema adaptativo e complexo.
A física do jeito que eles estudam não serve para estudar o cérebro. Universo é
fichinha perto do cérebro.
"Falta noção de ciência.
Aqui existem comentários que parecem de jogo de futebol."
Hoje parece haver uma corrida para criar máquinas
inteligentes que possam funcionar como nosso cérebro. Quando e como começou
essa história?
Quando Turing propôs a sua máquina em 1936, foi
trabalhar com o famoso matemático americano em Princeton, o Alonzo Church. Eles
criaram uma tese de que se uma função é computável, ela é computável pela
máquina de Turing. Ok, é perfeito na matemática teórica. Ocorre que a grande
maioria das equações matemáticas não é computável. Mal e mal conseguimos
traduzi-las numa linguagem de equação. Mesmo quando botamos em equação, boa
parte não dá para solucionar à mão. Tem que usar truques, aproximar, mexer e,
ainda assim, não soluciona analiticamente. São as chamadas funções
não-computáveis. Aí os caras da ciência computacional transportaram esse
teorema da matemática abstrata para o mundo atual. A partir disso começou a
loucura de dizer que uma maquina de Turing vai reproduzir cérebro humano.
E como de fato o cérebro funciona? Existe um modelo
além da constante transformação?
Nossa teoria é de que o cérebro funciona como
sistema recursivo digital e analógico. Digital é exemplificado pelos disparos
de neurônios, o que registrei minha vida inteira. E o analógico é como esses
disparos geram campos eletromagnéticos. Essa interação entre digital e
analógico gera a complexidade do cérebro. É um tipo diferente de informação.
Não é digital nem algoritmíca. Ela é semântica. É o que a gente é. Descreve
parâmetros imponderáveis, emoções, criatividade
Onde entra a parte matemática?
Aí que tá. O mais curioso é que conseguimos
conectar essa visão do cérebro com a matemática introduzida por Kurt Gödel.
Você talvez conheça. No começo do século passado, tinha um debate acirrado
entre os matemáticos alemães e austríacos. O cara mais fenomenal da época, o
David Hilbert, acreditava que todos os axiomas e teoremas da matemática podiam
ser demonstrados analiticamente. Ele sugeriu 9 ou 10 problemas que serviriam
para mostrar que a matemática é completa. Todas as verdades matemáticas teriam
demonstração formal. Aí um louco austríaco chamado Kurt Gödel, no mesmo
simpósio, durante uma aula perdida que ninguém viu, propôs dois teoremas da
incompletude. Ele disse que todos os sistemas formais são incompletos, isto é,
são incapazes de demonstrar que verdades que sabemos ser verdade podem ser
demonstradas categoricamente como verdades. E ele mostrou com a aritmética que
coisas mais básicas e que sabemos ser verdade não têm jeito de serem
demonstradas por uma linguagem interna formal. Ai perguntaram a ele como
sabemos então que é verdade. Ele respondeu: com a intuição.
A intuição é parte do cérebro?
A intuição é uma propriedade interna do cérebro.
Não é computável. Então isso foi um choque. A primeira reação do Hilbert foi
dizer que Gödel estava doido. Podia até ser, mas ele, o Gödel, estava certo.
Virou a teoria mais revolucionaria de matemática do século passado e acabou com
a esperança de que sistemas formais pudessem ser completos por si só. No livro
usamos argumentos matemáticos, computacionais, evolucionais e biológicos para
refutar esse transporte do aforismo de Turing para o mundo real. Mais do que
isso, criamos uma nova definição de informação. Existe uma informação que vai
além da que todos conhecemos, desse negócio de 1 e 0. É a informação que encontramos
na matéria orgânica viva e que é máxima no nosso cérebro. Chamamos de
informação godeliana para homenagear esse grande herói esquecido. Dizemos que a
informação godeliana surgiu antes e a projeção disso criou a informação de
Turing. De Gödel você chega em Turing, nunca o contrário. Esse é o argumento
que serve de princípio para o funcionamento do cérebro.
Todo cérebro funciona da mesma forma? Fica meio
estranho dizer que o Einstein tinha o mesmo aparato que o meu. Meio deprê até.
Pra família dele e tal.
Não. As linhas básicas são semelhantes, se olhar no
seu no meu, na média, você encontra o corpo caloso, trato córtico espinal, mas
os detalhes e a microanatomia variam. Quando pegaram o cérebro do Einstein
tentaram descobrir a genialidade. Um louco do Mississipi roubou e começou a
fatiar e procurar algo, não achou nada, comparou com o de prisioneiros,
dementes, pessoas com QI super baixo, olhava olhava, nicas. Claro, nunca ia
achar nada. As fatias do cérebro tão espalhados até hoje, coitado do Einstein.
Mas a genialidade dele não vem daí, vem da microconectividade, não dá para ver
e está distribuída por tudo. A visão fenológica, que existia e ainda domina um
pouco da neurociência, teve um tombo quando analisou o cérebro do Einstein.
Bom, professor, faz mais de uma hora e meia que
estamos aqui. Vou te liberar. Fiz você dar uma aula aqui.
Tudo bem, fica tranquilo.
Aliás, você continua dando aula em faculdade?
Dou aula. Meu único emprego real é na Universidade
de Duke. Dei aula muitos anos na Faculdade de Medicina da Universidade de São
Paulo, para os alunos de primeiro ano. Agora faço atividades com alunos da
pós-graduação.
A gente falou aqui de cientistas que foram
ignorados ou tidos como alucinados e, mais tarde, foram descobertos como
grandes teóricos. Questão existencial e jornalística: como saber a quais loucos
dar atenção hoje?
Infelizmente minha resposta é desanimadora. Não tem
como saber. Imagina o primeiro jornalismo no interior da Inglaterra. Não
aconteceu, mas imagina uma entrevista com o Charles Darwin à época que ele
publicou a teoria da evolução. O público já queria matá-lo. Ele, que vinha de
família religiosa, foi hostilizado, vivia em um refúgio. Físicos também ficavam
ofendidos com teorias do Einstein. Agora, quando uma teoria como a da evolução
começa a explicar vários fatos e quando previsões começam a se realizar, aí
você sabe que aquele louco você precisava ouvir. Aqui no Brasil vai por aí. O
conhecimento científico é muito baixo. É difícil saber quem ouvir. Tem umas
barbaridades que você ouve que são inacreditáveis.
Obrigado pela dose de desânimo, professor.
É desanimador, eu sei.
Para encerrar: qual seu próximo objetivo?
Trazer o Palmeiras pro G4.
Mesmo com o Valdívia lá?
É o grande objetivo nesse momento.
A entrevista foi resumida e editada para fins de
clareza. Os trechos sobre futebol também foram suprimidos por questões de
severas discordâncias.