Inferno em Alto Mar: O Lado Perverso da Crise
Global de Imigração
13 August 2015 // 03:57 PM CET
Cerca de trezentos migrantes estão desaparecidos
desde 6 de agosto, quando um barco virou enquanto cruzava o mar Mediterrâneo. De
janeiro para cá, pelo menos2.015 pessoas
morreram entre as costas da África e da Europa. O número é comparável ao ano
inteiro de 2014, quando 3.072 imigrantes faleceram – em 2012, para se ter uma
ideia do crescimento, foram 500.
Uma onda de conflitos armados e o abuso de direitos
humanos estão forçando mais pessoas
do que nunca a
deixarem suas casas. Tamanha procura tem deixado o processo de refugiados dos
países emergentes à beira do colapso. Quem quer asilo acaba apelando para
medidas extremas.
As Nações Unidas dizem que estamos no meio de uma crise global de imigração. Enquanto os países de destino
reagem com indecisão desconcertante — não sabem se devem agir como salva-vidas
em suas zonas costeiras ou mandar ver na defesa de fronteiras —, mais
imigrantes fazem fila para o próximo barco a sair do cais.
Caminho
Errado, Faça a Meia-Volta
“As pessoas estavam vomitando, estavam enjoadas por
causa do mar. O cheiro dentro do barco era insuportável”, me falou o imigrante
Mohammad Ali Baqiri. “Não tinhamos alimentos adequados nem água potável o
bastante para beber.”
Baqiri é um hazara étnico que fugiu do Talibã no
Afeganistão. Ele contou para a Motherboard como foi ser contrabandeado em mares
voláteis e um clima tropical severo numa viagem de sete dias da Indonésia à
Austrália, em 2001, quando tinha apenas 10 anos.
“Nas primeiras noites nos deparamos com uma série
de tempestades, chovia muito forte”, disse. “As pessoas rezavam, juntavam-se
para rezar por sobrevivência.”
Baqiri tinha sete anos quando deixou o Afeganistão
com seu irmão, a esposa do irmão e os quatro filhos deles. A família tomou uma
rota terrestre até o Paquistão, país vizinho, onde ficaram dois anos.
Hoje o Paquistão abriga 1,5 milhões de refugiados,
de acordo com o o Alto Comissário das Nações Unidas para Refugiados (UNHCR),
muitos deles do Afeganistão. É uma tendência globa fugir para países vizinhos,
mas, dado que conflitos e instabilidade são considerados uma questão
continental, os refugiados se deparam com condições que não diferem muito do
local que deixaram.
“Permanecemos ilegais no Paquistão durante dois
anos mas sempre houve assassinatos de hazaras por lá”, explicou Baqiri. “Então
decidimos ir embora e procurar um lugar seguro.”
Com a ajuda de contrabandistas, a família fugiu
para a Indonésia, onde o UNHCR os registrou como requerentes de asilo. Depois
de conhecer outros imigrantes que receberam status de refugiados e ficaram presos em campos da Indonésia, decidiram se arriscar no mar.
Após seis meses de espera, contrabandistas colocaram a família em um barco.
“Lembro bem daquela noite. Estava muito lotado,
muita gente descobriu o ponto de partida do barco e apareceu para ver se
poderia entrar”, disse. “As pessoas estavam se empurrando, acotovelando. Tinha
um segurança, e meu irmão pagou para ele todo o dinheiro que tínhamos para nos
deixar passar e pegar o barco.”
“Nos barcos, volta e meia não há
comida nem água o bastante para sobreviver."
Para realizar a travessia do
sudeste asiático até a Austrália, contrabandistas costumam comprar barcos de
pesca decrépitos. Os esquifes não são projetados para os passageiros ou águas
livres; são descaradamente inadequados para o mar.
Baqiri disse que os 150
requerentes de asilo de seu barco foram forçados a ficar dias debaixo do convés
para não serem descobertos.
“Todo mundo estava dentro do
barco, e tivemos que permanecer sentados lá durante noites e dias a fio. As
pessoas ficaram doentes”, contou. “O banheiro era um buraco, nada mais. No fim,
todos estavam exaustos, largados por toda parte.”
Depois de sete dias em alto mar,
o barco de Baqiri foi interceptado pela Marinha Australiana Real, que ordenou
com que o capitão desse a meia-volta e retornasse à Indonésia.
Os passageiros recusaram.
“Algumas pessoas do nosso barco
já tinham feito a jornada e foram redirecionados de volta à Indonésia, então
alguém resolveu tacar fogo no barco”, disse Baqiri. Segundo ele, o fogo se
espalhou tão rápido que os passageiros foram forçados a se jogar no mar.
“Tinha mulheres, crianças,
pessoas que não sabiam nadar. Eu só escutava pessoas gritando por todo lado:
gritando, gritando, gritando.”
Segundo Baqiri, duas pessoas se
afogaram; seu sobrinho de um ano de idade ficou seis horas inconsciente depois
de serem resgatados das águas pela Marinha.
“Imaginamos o pior”, disse.
Há mais questões complicadas na política
australiana que vão além de lidar com “o pessoal dos barcos”. Slogans como
“Parem os Barcos” venceram as eleições federais, enquanto ações para acabar com os procedimentos costeiros perderam. Isso sem contar
que a maioria de
requerentes de asilo na Austrália chega pelos ares.
O governo australiano começou a fazer os barcos
darem meia-volta, oficialmente, em 2001. Desde então a prática segue
consistente. Hoje o governo se compromete a “a parar os barcos a todo custo“.
“O governo australiano, nos últimos anos,
introduziu uma série de políticas direcionadas a deter chegadas de barco”,
explicou Graeme McGregor, da Anistia Internacional.
Em outdoors espalhados pelos países de origem,
imigrantes em potencial recebem a mensagem clara de que “a rota para a Austrália está fechada”
e, se chegarem à Austrália de barco, “reassentamento no país jamais será uma
opção”.
A operação australiana de bloqueio é conduzida por
militares. A primeira resposta deles é dar meia-volta com os barcos rumo ao
porto de partida. Se não der, os barcos são enviados à Papua-Nova Guiné
ou Nauru, pequeno países no Pacífico,
para o processamento de reivindicações de asilo. Se a reivindicação de um
indivíduo é deferida, ele será estabelecido na PNG — um dos lugares mais
perigosos do mundo para uma mulher, segundo a Human Rights Watch — ou em Nauru, o terceiro
menor estado do mundo.
“Em alguns aspectos, estão alcançando seus
objetivos. Mas sem levar em consideração direitos humanos e a saúde das pessoas
que eles pretendem ajudar”, disse McGregor. “Nos barcos, volta e meia não há
comida nem água o bastante para sobreviver. Os passageiros se encontram
gravemente desidratados, sofrem com o enjôo do mar e costumam estar em péssimo
estado físico. É por isso que a Anistia está preocupada com a volta dos barcos
para repetir a jornada.”
Baqiri duvida que o barco em que ele e sua família
viajaram para a Austrála tenha conseguido retornar à Indonésia.
“Os barcos que vêm da Indonésia costumam ser do
mesmo tipo: baratos, comprados para uma viagem só de ida, creio eu”, disse ele.
O UNHCR exprimiu o receio de que fazer os barcos de
refugiados voltar negue uma avaliação adequada de suas reinvidações por asilo.
Em alguns casos, dizem que pode ser uma violação da Convenção sobre Refugiados de 1951,
das Nações Unidas, cujo alicerce é não retornar um refugiado ao território onde
enfrenta perseguição.
Também há preocupações acerca de práticas
questionáveis em alto mar. Há pelo menos um incidente relatado em que autoridades australianas pagaram 5 mil
dólares para cada membro da tripulação de um barco de contrabando para eles
darem meia-volta e retornarem à Indonésia.
O governo australiano se recusa a confirmar esses
pagamentos.
O Mercado de Pessoas
O desespero de imigrantes significa que os negócios
vão bem para os contrabandistas de pessoas. (Em oposição a traficantes de
humanos, os contrabandistas costumam trabalhar com
consentimento de
encargos.) A Organização Internacional das Migrações (OIM) estima que é uma
indústria avaliada em até 10 bilhões de dólares por ano.
Contrabandistas não cobram mais do que 400 dólares
por uma vaga em um barco inflável partindo da Líbia rumo as águas italianas. A
rota da Síria ao sudeste da Sicília toma cerca de 1.500 dólares de um migrante, e a jornada do Paquistão à
Austráliapode custar até 15 mil.
Com centenas de migrantes amontoados a bordo, cada
barco carregado representa dezenas de milhares de dólares. Ainda assim,
contrabandistas cortam gastos. Eles utilizam barcos descartáveis, surrados, e
regulam suprimentos vitais, como alimentos, água e petróleo. Em alguns casos,
sequer contratam tripulação; no lugar, entregam uma bússola a
um passageiro e apontam para o horizonte. Cada detalhezinho reforça a margem de
lucro.
Em alguns casos, a postura dos contrabandistas
frente ao valor de sua carga ultrapassa a indiferença e beira a malícia. Em
setembro de 2014, um barco que transportava cerca de 500 migrantes foi
deliberadamente afundado por contrabandistas no mar Mediterrâneo. Treze
requerentes de asilo sobreviveram; passaram três dias no mar antes de serem
encontrados por socorristas.
Os sobreviventes relataram aos investigadores que contrabandistas
palestinos e egípcios empurraram a embarcação de pesca superlotada depois que
os migrantes se recusaram a passar para um barco menor – menos adequado para o
mar.
“Depois que bateram no nosso barco, fizeram questão
de certificar que havia afundando completamente antes de partirem. Estavam
rindo”, um dos sobreviventes contou à OIM.
Um contrabandista, contam, usou uma machete para decepar as mãos de um
imigrante que se agarrou ao barco agressor.
Os sobreviventes contaram que a maioria dos
passageiros do barco ficou presa no porão e afundou com o casco. Alguns
relataram histórias angustiantes aos investigadores sobre as horas e os dias
que seguiram o ataque – um homem se enforcou quando o barco começou a afundar e
mães sucumbiram à exaustão e deixaram os bebês escaparem de seus braços.
Sobreviventes contaram que pagaram 4 mil dólares
aos contrabandistas pela viagem fatal.
Não restam dúvidas de que há muito dinheiro
envolvido no contrabando de pessoas. Mas, conforme alguns contrabandistas
demonstraram, há mais dinheiro ainda a ser feito em exploração e tráfico
direto.
Homens rohingya empurram um barco de pesca até a
margem, 4 de julho de 2015, Shamlapur, Bangladesh. Nos últimos meses, milhares
de rohingyas desembarcaram nas costas da Indonésia, Malásia e Tailândia. Muitos
deixam o litoral sul de Bangladesh em barcos de pesca para se encontrar com
navios maiores em alto mar, que os conduzirá até a Malásia, viagem que pode
custar até 2 mil dólares. Créditos: Shazia Rahman/Getty Images
Um porta-voz da OIM contou à Motherboard que a
situação está particularmente desastrosa para requerentes de asilo rohingya e
migrantes econômicos bengaleses que atravessam o mar de Andamão rumo a Malásia.
Em 2008, a Malásia subtraiu caminhos jurídicos de
migração para bengaleses. Como resultado, mais pessoas apelaram para
contrabandistas. A exploração cresceu junto. A OIM relatou que imigrantes
permanecem meses presos no mar e, caso não sejam resgatados por determinada
quantia pelas famílias, são vendidos como trabalhadores ou escravos sexuais.
A grande questão é: com tantos relatos disseminados
sobre o caráter cruel do negócio, por que contrabandistas não são punidos?
É sempre difícil lidar com crimes multinacionais.
Além disso, leis internacionais contra o contrabando de pessoas são apenas um
conjunto de diretrizes e, por natureza, a maioria dos contrabandistas opera em países
marcados por corrupção e instabilidade. Mirar nos criminosos por trás dos
barcos parece fútil.
McGregor e a Anistia apontam para uma raiz mais
profunda.
“A rede de contrabando não existiria — pelo menos
não na proporção atual — se o sistema global responsável por assegurar com que
pessoas possam solicitar asilo com segurança não estivesse falido como está”,
disse ele. “Se quisermos enfrentar o comércio do contrabando de pessoas,
precisamos reavaliar o sistema.”
Salva-vidas
Em 4 de
outubro de 2013, a Europa acordou com a notícia de que um barco com mais de 500
imigrantes havia virado na costa da ilha italiana de Lampedusa. A apenas 320
quilômetros da Líbia, é o porto europeu mais próximo para muitos migrantes. Os
sobreviventes disseram que estavam tão perto da ilha que observavam os faróis dos carros em movimento
logo antes da embarcação afundar.
Após dias
de busca, as autoridades confirmaram a morte de 368 pessoas. Pouco menos de uma
semana depois, outro naufrágio tomou 30 vidas. O Primeiro Ministro de Malta
alertou para o fato de que o Mediterrâneo estava virando um cemitério e apelou para a UE ajudar a
proteger a fronteira ao sul da Europa.
A Itália
tirou da cartola uma operação de busca e resgate chamada Mare Nostrum. Nos doze meses seguintes, a iniciativa resgatou mais de 150 mil
pessoas do Mediterrâneo, mas não conseguiu evitar a morte de 3 mil migrantes.
Mais e mais barcos içaram vela rumo à Europa.
A maioria
daqueles que chegaram às costas italianas não permaneceram na Itália,
espalharam-se, buscando asilo ao redor de toda a Europa. Com aplicações para asilo em crescimento, a UE
não poderia mais ignorar a situação no Mediterrâneo e decidiu endossar um
substituto para a operação italiana. A União decidiu que a iniciativa
salva-vidas da Itália estava deixando a travessia do Mediterrâneo mais segura e
convidou migrantes para os litorais europeus. Com base nisso, a operação
reduzida da UE que substituiu a Mara Nostrum virou mais proteção de fronteira do que de busca e resgate.
A
distinção não impediu com que o número crescente de migrantes fizesse a viagem.
Nadando
contra a maré
Uma guerra novinha em folha na Ucrânia, conflitos
extensos no Afeganistão e na Somália, abusos de direitos humanos na Eritreia e
caos na Líbia são alguns dos fatores por trás dos recordes de pessoas
deslocadas.
Migração naval é apenas um pedacinho do problema.
Entre os 13,9 milhões de refugiados ano passado, 11 milhões se deslocaram
dentro das próprias fronteiras, e a maior parte dos 2,9 milhões restantes
procurou abrigo em países vizinhos.
O Mediterrâneo testemunha o grosso dos migrantes
que viajam de barco. Por um lado, a Europa não consegue acompanhar o influxo de
barcos; por outro, os contrabandistas norte-africanos não conseguem construir
barcos rápidos o bastante. Enquanto isso, contrabandistas com muito menos
escrúpulos já resolveram o problema: começaram a enviar a carga humana em botes infláveis.
Depois de um período particularmente trágico, semana passada, o Chefe de Missão da OIM na
Itália alertou a Europa que o problema vai além dos mares.
“As operações de busca e resgate em alto mar não
podem ser as únicas responsabilidades da Europa frente a esse desastre
humanitário... Enquanto não houver alternativas seguras para os migrantes,
gangues criminosas continuarão a empacotar pessoas em embarcações impróprias, e
podemos contar com mais tragédias”, disse ele.
Tradução:
Stephanie Fernandes
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