Cotas
foram revolução silenciosa no Brasil, afirma especialista
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UnB foi a primeira universidade
federal a adotar sistema de cotas raciais UnB reserva vagas para negros desde o
vestibular de 2004 Percentual de negros com diploma cresceu quase quatro vezes
desde 2000, segundo IBGE/Marcello Casal jr/Agência Brasil
Publicado
em 27/05/2018 - 08:15
Por
Débora Brito – Repórter da Agência Brasil Brasília
A chance de ter um diploma de graduação aumentou
quase quatro vezes para a população negra nas últimas décadas no Brasil. Depois
de mais de 15 anos desde as primeiras experiências de ações afirmativas no
ensino superior, o percentual de pretos e pardos que concluíram a graduação
cresceu de 2,2%, em 2000, para 9,3% em 2017.
Apesar do crescimento, os negros ainda não
alcançaram o índice de brancos diplomados. Entre a população branca, a
proporção atual é de 22% de graduados, o que representa pouco mais do que o
dobro dos brancos diplomados no ano 2000, quando o índice era de 9,3%. Os dados
são do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
O Censo do Ensino Superior elaborado pelo Instituto
Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) também
evidencia o aumento do número de matrículas de estudantes negros em cursos de
graduação. Em 2011, do total de 8 milhões de matrículas, 11% foram feitas por
alunos pretos ou pardos. Em 2016, ano do último Censo, o percentual de negros
matriculados subiu para 30%.
“A política de cotas foi a grande revolução
silenciosa implementada no Brasil e que beneficia toda a sociedade. Em 17 anos,
quadruplicou o ingresso de negros na universidade, país nenhum no mundo fez
isso com o povo negro. Esse processo sinaliza que há mudanças reais para a
comunidade negra”, comemorou frei David Santos, diretor da Educafro -
organização que promove a inclusão de negros e pobres nas universidades por
meio de bolsas de estudo.
O professor Nelson Inocêncio, que integra o Núcleo
de Estudos Afro-brasileiros da Universidade de Brasília (UnB), pioneira na
adoção das cotas raciais, também destaca o crescimento, mas pondera que é
preciso pensar outras políticas para garantir uma aproximação real entre o
nível de educação de negros e brancos.
"Eu
sou esperançoso de que a política de cotas, mesmo com seus problemas, ao final
consiga um êxito. Que a gente consiga tornar a presença negra um pouco mais
significativa nesses espaços tão historicamente embranquecidos", disse
Nelson Inocêncio - Marcelo Camargo/Agência Brasil
“Antes de falar em igualdade racial, temos que
pensar em equidade racial, que exige políticas diferenciadas. Se a política de
cotas não for suficiente, ainda que diminua o abismo entre brancos e negros, a
gente vai ter que ter outras políticas. Não é possível que esse país continue, depois de 130 anos de
abolição da escravatura, com essa imensa lacuna entre negros e brancos”,
destacou Inocêncio.
Diferenciar para incluir
Há 15 anos, o conceito de ações
afirmativas para inclusão de negros na educação superior motivou intenso debate
no meio universitário. Em junho de 2003, decisão tomada pela Universidade de
Brasília (UnB) de adotar o sistema de cotas raciais em seu processo de seleção
abriu caminho para uma mudança no paradigma de acesso à universidade, antes
fortemente baseado na meritocracia.
O Plano de Metas para Integração
Social, Étnica e Racial aprovado pelo Centro de Ensino, Pesquisa e Extensão da
UnB previa que 20% das vagas do vestibular seriam reservadas para estudantes
negros, de cor preta ou parda. A política foi adotada a partir do vestibular de
2004, em todos os cursos oferecidos pela universidade.
À época relatora do projeto, a
professora do Departamento de Comunicação da UnB Dione Moura conta que a
implantação do sistema se deu em meio a muitas resistências e sob críticas de
que a política de ação afirmativa poderia criar um conflito racial inexistente
no país ou diminuir a qualidade da universidade.
"O projeto das cotas na UnB foi um
dos mais desafiantes que eu trabalhei como profissional, cidadã, mulher e
negra", diz a professora Dione Moura, do departamento de Comunicação
Social - Marcelo Camargo/Agência Brasil
Um dos principais desafios,
segundo a professora, foi convencer os veículos de imprensa, a sociedade e a
própria academia de que era necessária uma política pública específica para
negros e não para a população pobre de forma geral. Mesmo diante dos números de
desigualdade racial na educação e no mercado de trabalho, questionamentos e
dúvidas emergiram, principalmente com relação à forma de identificação dos
negros e ao reconhecimento do problema do racismo.
“O Brasil tinha uma ideia de
políticas públicas como universalistas, não tinha ideia de políticas regionais,
por gênero e raça. O recorte de renda era o único indicador reconhecido como
legítimo para ações pontuais. Uma política de ação afirmativa exclusiva para a
população negra brasileira foi colocar o dedo na ferida, causou um grande
rebuliço”, lembrou Dione, uma das poucas professoras negras da universidade.
Outras resistências foram
quebradas, como a ideia de que o negro de alta renda não deveria ser
beneficiado, de que os cotistas abandonariam a graduação ou que teriam
desempenho inferior aos de alunos não cotistas. “Já se verifica que esses
estudantes são tão capazes quanto os demais ou ainda têm um desenvolvimento
muito melhor. Nesse sentido, não há dúvida da capacidade dos cotistas, porque
eles já demonstraram isso e pesquisas também têm revelado”, destacou o
professor Manoel Neres, coordenador do Centro de Convivência Negra da UnB.
“O resultado social negou os
preconceitos. A UnB abriu as portas para que outras universidades se abrissem
para o jovem negro e o jovem indígena e que depois o próprio governo federal
abrisse uma política nacional para discutir as cotas no sistema público
universitário”, completou Dione Moura.
Frutos
Aos 31 anos, a antropóloga
Natália Maria Alves Machado, integrante da primeira turma de cotistas da UnB,
em 2004, avalia que a adoção do sistema foi um marco histórico que levou a
sociedade a refletir sobre algumas regras e revisá-las em prol da justiça e dos
direitos coletivos.
Natália foi a primeira integrante
de sua família a ingressar em uma universidade pública federal e conta que a
experiência foi muito desafiadora.
Ela relata que no início foi
difícil lidar com o assédio da imprensa e, ao mesmo tempo, ter de se adaptar à
nova rotina e às responsabilidades do mundo acadêmico, como encontrar recursos
para alimentação, transporte e material de estudo. Para se manter
financeiramente, ela contou com a assistência estudantil da universidade, fez
estágio e pesquisas.
“A primeira turma visualmente tinha
poucas pessoas negras. A gente ficava diluído ali preocupado com as exigências
do espaço universitário. O que mais chamava atenção era o assédio da mídia,
muita gente abordava para dar entrevista. Depois, em um segundo momento, muitos
pesquisadores estavam desenvolvendo análises sobre a política. A gente sabia
que tinha uma dinâmica muito forte acontecendo e foi amadurecendo.”
“Por mais que nossa presença ainda seja diminuta no
espaço acadêmico, é emocionante ver muito mais cores e formas, corpos, estéticas,
símbolos e culturas diversos. A universidade se tornou um espaço muito mais
rico e instigante”, diz a mestranda Natália Machado - Fabio Rodrigues
Pozzebom/Agência Brasil
Depois de se formar, Natália
ingressou no mercado de trabalho como autônoma, prestando assessoria a
movimentos sociais na área da saúde. Hoje, é mestranda na UnB e faz pesquisas
na área de direito à saúde, bioética e acessibilidade.
Após vários anos frequentando os
bancos da universidade, ela relata que se orgulha de ver a diversidade estética
nos espaços da UnB e, principalmente, no modo de fazer pesquisa.
“Os estudantes indígenas e negros
e negras que adentraram o espaço acadêmico nos últimos 15 anos trouxeram um
refresco de inovação metodológica, teórica, epistemológica sem precedentes, de
ampliar e aprofundar o conhecimento, trazendo muito mais verdade e justiça”,
avaliou.
“Por mais que nossa presença
ainda seja diminuta no espaço acadêmico, é emocionante ver muito mais cores
e formas, corpos, estéticas, símbolos e culturas diversos. A universidade
se tornou um espaço muito mais rico e instigante”, completou.
Mudanças
A percepção de mudança no visual
da universidade é compartilhada por colegas contemporâneos. O cientista
político Derson Maia, 29 anos, conta que também foi o primeiro de sua família a
conseguir ingressar em uma universidade. Ele passou no vestibular de 2008 por
meio do sistema de cotas e diz que percebe o aumento considerável no número de
negros nos últimos anos.
“Mesmo com cotas, você via
pouquíssimos negros na universidade. Na minha turma de ciência política era eu
e uma outra menina. Quando eu estava me formando, em 2014, eu comecei a notar
que a universidade realmente estava ficando bem mais negra, com pessoas de outras
classes sociais mais baixas, porque antes era muito difícil. O negro que eu
convivia ao longo do curso era estrangeiro”, lembrou Derson.
“As ações afirmativas produziram algo que é
realmente inédito na universidade, que é trazer esse olhar diverso para dentro
da academia”, avalia o cientista político Derson Maia - Marcello Casal
Jr/Agência Brasil
O cientista político ficou
sabendo das cotas quando estava no primeiro ano do ensino médio. Um grupo de
universitários negros visitou a escola pública onde ele estudava para
apresentar o sistema aos futuros vestibulandos. Na sala de aula, ele era um dos
quatro negros em uma turma de 40 alunos.
“Eu não tinha aquele medo do que
seria na universidade, porque eu já via outros negros falando sobre as cotas e
que seriam um caminho importante”, lembrou.
Depois da graduação, Derson fez
mestrado em políticas públicas e, atualmente, é doutorando da Faculdade de
Direito da UnB – edital no qual foi selecionado por meio de cotas.
“Eu acho que as ações afirmativas
produziram algo inédito que é trazer esse olhar diverso para dentro da
academia. Se a gente quer ter uma universidade que faça inovação científica,
tecnológica, você precisa abrir para a diversidade. Assim, [ao incluir] pessoas
negras que vieram de uma outra realidade, de uma realidade de periferia, você
acaba inserindo novos olhares para o mesmo problema e vai desenvolvendo novos
caminhos. Eu acho que a universidade passou a ser uma outra UnB”, destacou.
Longa trajetória
UnB reserva vagas para negros desde o vestibular de
2004 - Marcello Casal Jr/Agência Brasil
A aprovação do projeto que
instituiu o sistema de cotas raciais na UnB foi resultado de um longo processo
de articulação de integrantes do movimento negro, com especialistas e
representantes do Poder Público.
Um dos marcos que precederam a
adoção das cotas no Brasil foi a 1ª Conferência Mundial contra o Racismo, a
Discriminação Racial, a Xenofobia e as Formas Conexas de Intolerância,
realizada em Durban, na África do Sul, em 2001. A conferência motivou as personalidades
negras brasileiras a reforçarem o debate das ações afirmativas para negros no
Brasil, que se tornou, na ocasião, signatário do compromisso de combate a todo
tipo de discriminação racial.
Ainda em 2001, a Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (Uerj) abriu caminho para a implantação do sistema no
ensino superior. No ano seguinte, a Assembleia Legislativa do estado promulgou
a lei que instituía o sistema de seleção por cotas para todas as universidades
estaduais.
Em 2003, a UnB foi a primeira instituição
federal a oficializar a opção pelo sistema de reserva de vagas para negros.
Quase dez anos depois, em 2012, o governo federal instituiu a Lei de Cotas
Sociais e Raciais para todas as universidades do país e, em 2014, para
concursos públicos.
Fonte:
UnB - dados de 2018
Presença
UnB foi a primeira universidade federal a adotar
sistema de cotas raciais - Marcello Casal Jr/Agência Brasil
Dados da UnB mostram que, no primeiro ano do
sistema, ingressaram na universidade 376 negros cotistas. A quantidade de
pretos e pardos a entrar na instituição por meio de cotas foi crescendo
ano a ano. Em 2011, por exemplo, 911 negros cotistas puderam fazer a matrícula
na graduação. No acumulado de 2004 a 2018, ingressaram na universidade 7.648
negros pelo sistema de cotas raciais.
“Eu acho que a academia foi pioneira e isso foi
muito importante não só para o contexto da UnB, mas para a sociedade como um
todo, no entendimento das cotas, em especial cotas para negros. Nesses 15 anos
a avaliação que nós temos é muito positiva”, comemorou o decano de Ensino da
Graduação da UnB, Sérgio Antônio Andrade de Freitas.
A partir de 2013, já sob a vigência da lei federal
de cotas, a UnB mudou a distribuição da reserva de vagas. Para obedecer ao
percentual estabelecido pelo Ministério da Educação para as cotas sociais, a
UnB reduziu as cotas raciais. A universidade reserva, atualmente, 50% das vagas
para alunos de escolas públicas e mais 5% exclusivamente para negros,
independentemente da sua condição econômica.
Atualmente, o sistema passa pelo desafio de
aperfeiçoar o processo de seleção baseado na
autodeclaração. A UnB tem
investigado ao menos 100 casos de possíveis fraudes. Em âmbito nacional, o
Judiciário já se manifestou de forma favorável ao estabelecimento de comissões
para averiguar a veracidade das declarações dos candidatos.
“Nesses 15 anos a avaliação que nós temos é muito
positiva. Pelos dados dá para ver o crescimento da quantidade de negros”, disse
o decano de Ensino de Graduação da UnB, Sérgio Andrade de Freitas - Marcello
Casal Jr/Agência Brasil
O decano Sérgio Andrade acredita
que as denúncias não afetarão o sistema, mas poderá contribuir para ajustes.
“Todo processo exige um
aperfeiçoamento, qualquer mudança que nós temos na sociedade demanda um
processo de amadurecimento entre as pessoas”, avalia Sérgio Andrade.
Conferência
O direito à igualdade de oportunidade para negros
será um dos temas debatidos na 4ª Conferência
Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Conapir), que será realizada esta semana
em Brasília. O evento ocorre no âmbito da Década Internacional dos
Afrodescendentes (2015-2024) e abordará questões sobre reconhecimento, justiça,
desenvolvimento e igualdade de direitos.
A programação da conferência tem início amanhã (28)
com diferentes palestras, oficinas temáticas e atividades culturais, no Centro
Internacional de Convenções do Brasil. O evento, promovido pelo Ministério dos
Direitos Humanos, por meio da Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da
Igualdade Racial (Seppir) ocorre até a próxima quarta-feira (30).
Saiba mais
Edição:
Lílian Beraldo
http://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2018-05/cotas-foram-revolucao-silenciosa-no-brasil-afirma-especialista
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