sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Música das bases, orgulho do pais.



Samba como crônica social











IVAN VILELA | ED. 229 | MARÇO 2015

É sabido que o samba foi, e ainda é, o ritmo mais gravado no Brasil ao longo dos tempos. Contribuíram para isso o seu surgimento no Rio de Janeiro, então capital federal, e também o empenho do governo Getúlio Vargas na valorização de uma cultura urbana utilizando o rádio como artifício de difusão de suas ideologias. Soma-se a estes a permeabilidade musical desse ritmo que soube dialogar com outras músicas de origem afro-americanas como a dos Estados Unidos e com os diversos ritmos caribenhos que aportaram no Brasil no período da Segunda Grande Guerra.
O livro Abençoado & danado do samba, de Ricardo Azevedo, editado pela Edusp, busca um novo recorte na leitura da música popular. Primeiramente por não desprezar a importância que a cultura popular desempenha na estruturação da música popular brasileira, fato quase nunca relevado pelos estudiosos do segmento. Segundo, por se restringir à sua área de conhecimento, a literatura, não caindo no descuido de falar sobre a música sem ter conhecimentos específicos para tal. É uma pesquisa de vulto a que resultou neste livro; um doutorado realizado na área de Análise do Discurso, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

Ricardo Azevedo é profundo e honesto em suas indagações. Honesto por reconhecer, aceitar e se devotar à força de um segmento sociocultural que certamente não é o de sua origem e por dar a suas análises um tom de empirismo que acaba por autenticar o seu posicionamento junto à cultura popular. Com uma escrita clara e tom coloquial, o autor consegue estabelecer um diálogo com diversas áreas do conhecimento para criar uma nova maneira de se olhar para o samba. Trata-se de um grande estudo da cultura popular manifesto na MPB pela via do samba.
Após levantar uma rápida história da música brasileira sob a visão de diversos autores, é mostrado como se deu a construção de duas diferentes percepções de mundo a partir de um pensamento escrito, chamado por ele de hegemônico, moderno e escolarizado e de um pensamento oral, nomeado consciência popular. Neste último reside, em grande parte, o repertório de samba. No cerne de suas análises impera um olhar antropológico que certamente ajuda na desconstrução dos discursos evolucionistas e/ou deterministas feitos sobre a música popular ao longo dos anos.

A partir de minuciosa análise de um vastíssimo repertório mostra como o samba constitui, em parte, uma manifestação em prol da manutenção de um modelo popular de valores e vida. Suas pesquisas acabam por identificar a permanência de conceitos recorrentes no discurso popular como a solidariedade, a religiosidade, o respeito à hierarquia, a estrutura familiar, o uso da sabedoria popular expressa por ditados e ideias perpetuadas boca a boca e a ideia de grupo, de coletividade.
Pequenas adaptações da tese para o livro seriam positivas. As diversas leituras sobre a cultura popular feitas por pesquisadores como Havelock, Olson, Zumthor, Goody e Ong poderiam ser resumidas com palavras do próprio autor. Extensas notas de rodapé poderiam também ser, na medida do possível, incorporadas ao texto.
O fato é que com este livro o samba cresce em importância ao olhar de todos realizando não só a função de cronista das realidades vividas por seus agentes, mas a de tornar-se, na visão de Ricardo Azevedo, um elemento de coesão e manutenção de valores que se dissipam atualmente pelas vias do consumo e de uma monocultura imposta pela mídia.
E sem medo se posiciona: “O discurso do samba é popular porque consegue tratar de temas humanos complexos por meio de uma linguagem pública e acessível, de forma a gerar identificação ou pelo menos sintonia em pretos, brancos, amarelos e mestiços; pobres e ricos; universitários e analfabetos; ateus e crentes; patrões e empregados; técnicos especialistas e paus pra toda obra; professores e alunos; crianças e adultos; modernos e tradicionais, em suma, em simplesmente todas as pessoas.
Desprezar ou dar-se o luxo de desconhecer as características de um discurso com tamanha envergadura e poder de penetração é inacreditável veleidade, preconceito e alienação. Certamente, em nada contribuirá nem para a compreensão da arte popular, nem da arte moderna e erudita, nem para a construção, no Brasil, de qualquer coisa que possa ser chamada de civilizada”.
Ivan Vilela é professor da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo e autor de Cantando a própria história – música caipira e enraizamento(Edusp, 2013).

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