Samba como crônica social
IVAN VILELA | ED. 229 | MARÇO 2015
É sabido que o samba foi, e ainda é, o ritmo mais gravado no Brasil ao
longo dos tempos. Contribuíram para isso o seu surgimento no Rio de Janeiro,
então capital federal, e também o empenho do governo Getúlio Vargas na
valorização de uma cultura urbana utilizando o rádio como artifício de difusão
de suas ideologias. Soma-se a estes a permeabilidade musical desse ritmo que
soube dialogar com outras músicas de origem afro-americanas como a dos Estados
Unidos e com os diversos ritmos caribenhos que aportaram no Brasil no período
da Segunda Grande Guerra.
O livro Abençoado & danado do samba, de
Ricardo Azevedo, editado pela Edusp, busca um novo recorte na leitura da música
popular. Primeiramente por não desprezar a importância que a cultura popular
desempenha na estruturação da música popular brasileira, fato quase nunca
relevado pelos estudiosos do segmento. Segundo, por se restringir à sua área de
conhecimento, a literatura, não caindo no descuido de falar sobre a música sem
ter conhecimentos específicos para tal. É uma pesquisa de vulto a que resultou
neste livro; um doutorado realizado na área de Análise do Discurso, na
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
Ricardo Azevedo é profundo e honesto em suas indagações. Honesto por
reconhecer, aceitar e se devotar à força de um segmento sociocultural que
certamente não é o de sua origem e por dar a suas análises um tom de empirismo
que acaba por autenticar o seu posicionamento junto à cultura popular. Com uma
escrita clara e tom coloquial, o autor consegue estabelecer um diálogo com
diversas áreas do conhecimento para criar uma nova maneira de se olhar para o
samba. Trata-se de um grande estudo da cultura popular manifesto na MPB pela
via do samba.
Após levantar uma rápida história da música brasileira sob a visão de
diversos autores, é mostrado como se deu a construção de duas diferentes
percepções de mundo a partir de um pensamento escrito, chamado por ele de hegemônico, moderno e escolarizado e de um
pensamento oral, nomeado consciência popular.
Neste último reside, em grande parte, o repertório de samba. No cerne de suas
análises impera um olhar antropológico que certamente ajuda na desconstrução
dos discursos evolucionistas e/ou deterministas feitos sobre a música popular
ao longo dos anos.
A partir de minuciosa análise de um vastíssimo repertório mostra como o
samba constitui, em parte, uma manifestação em prol da manutenção de um modelo
popular de valores e vida. Suas pesquisas acabam por identificar a permanência
de conceitos recorrentes no discurso popular como a solidariedade, a
religiosidade, o respeito à hierarquia, a estrutura familiar, o uso da
sabedoria popular expressa por ditados e ideias perpetuadas boca a boca e a
ideia de grupo, de coletividade.
Pequenas adaptações da tese para o livro seriam positivas. As diversas
leituras sobre a cultura popular feitas por pesquisadores como Havelock, Olson,
Zumthor, Goody e Ong poderiam ser resumidas com palavras do próprio autor.
Extensas notas de rodapé poderiam também ser, na medida do possível,
incorporadas ao texto.
O fato é que com este livro o samba cresce em importância ao olhar de
todos realizando não só a função de cronista das realidades vividas por seus
agentes, mas a de tornar-se, na visão de Ricardo Azevedo, um elemento de coesão
e manutenção de valores que se dissipam atualmente pelas vias do consumo e de
uma monocultura imposta pela mídia.
E sem medo se posiciona: “O discurso do samba é popular porque consegue
tratar de temas humanos complexos por meio de uma linguagem pública e
acessível, de forma a gerar identificação ou pelo menos sintonia em pretos,
brancos, amarelos e mestiços; pobres e ricos; universitários e analfabetos;
ateus e crentes; patrões e empregados; técnicos especialistas e paus pra toda
obra; professores e alunos; crianças e adultos; modernos e tradicionais, em
suma, em simplesmente todas as pessoas.
Desprezar ou dar-se o luxo de desconhecer as características de um
discurso com tamanha envergadura e poder de penetração é inacreditável
veleidade, preconceito e alienação. Certamente, em nada contribuirá nem para a
compreensão da arte popular, nem da arte moderna e erudita, nem para a
construção, no Brasil, de qualquer coisa que possa ser chamada de civilizada”.
Ivan Vilela é professor da Escola de Comunicação
e Artes da Universidade de São Paulo e autor de Cantando
a própria história – música caipira e enraizamento(Edusp, 2013).
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