sexta-feira, 25 de março de 2016

Método e Rigor II



O mínimo que você precisa saber sobre Descartes para não ser um idiota.
mar 1, 2015
Segunda e ultima parte

 


  • Argumento do Sonho:
Todos nós já tivemos sonhos vívidos o suficiente que, enquanto estávamos dormindo, não podíamos identificar se estávamos sonhando ou estávamos acordado. Só descobrimos que aquilo era um sonho quando enfim acordamos. Se você já sonhou que estava caindo de um prédio e acordou assustado na cama, você sabe muito bem como é isso! O Descartes então pergunta: Como podemos saber se não estamos sonhando? Quando um sonho é muito vívido, nós só descobrimos que estamos sonhando quando acordamos. Mas e se estivéssemos sonhando agora. Todas as sensações que temos nos pareceriam vívidas de tal modo que não poderíamos saber se estamos ou não sonhando, e teríamos de esperar acordar. Vejamos as palavras do Descartes:

“Em verdade, com que frequência o sono noturno não me persuadiu dessas coisas usais, isto é, que estava aqui, vestindo essa roupa, sentado junto ao fogo, quando estava, porém, nu, deitado entre as cobertas! Agora, no entanto, estou certamente de olhos despertos e vejo este papel, e esta cabeça que movimento não está dormindo, e é de propósito, ciente disso, que estendo e sinto esta mão, coisas que não ocorreriam de modo tão distinto a quem dormisse. Mas, pensando nisso cuidadosamente, como não recordar que fui iludido nos sonos por pensamentos semelhantes, em outras ocasiões! E, quando penso mais atentamente, vejo do modo mais manifesto que a vigília nunca pode ser distinguida do sono por indícios certos, fico estupefato e esse mesmo estupor quase me confirma na opinião de que estou dormindo.”
(Meditações Sobre a Filosofia Primeira – Primeira Meditação – René Descartes)

Se aceitarmos isso como razoável, colocamos em dúvida todas os nossos sentidos de uma só vez. Poderíamos, muito bem, estar em um sonho tão vívido que seríamos incapaz de distinguir o que é sonho e o que é realidade. Só disso ser possível abrimos brecha para argumentos céticos. Então, de acordo com o método do Descartes, não podemos confiar em nossos sentidos. O que vemos, o que ouvimos, o que sentimos ao tocar ou provar alguma coisa, o que podemos dizer sobre o mundo externo à nossa mente. Tudo isso é posto em dúvida. Sendo assim, grande parte do nosso conhecimento está em maus lençóis, pois os argumentos céticos colocaram todas as justificações que temos para esses conhecimento em cheque. Mas tudo, é isso que Descartes quer. Ele quer eliminar tudo o que podemos pôr em dúvida e encontrar uma fonte segura.
  • Argumento do Gênio Maligno:
Digamos que houvesse um gênio – daquele da lâmpada, sabe? Do Alladin – que fosse completamente poderoso, que soubesse de tudo, mas que fosse um grande filho da mãe. Ele só quer nos enganar em tudo que puder. A possibilidade da existência de um gênio desse já seria suficiente para nos colocar em dúvida sobre nosso sentidos – ele poderia estar nos enganando. Mas já apresentamos o argumento do sonho, que parece razoável. Vamos ver o que mais esse gênio maligno pode nos sacanear. Ainda que estivéssemos sonhando, parece razoável aceitar que certas coisas não podemos nos enganar. Por exemplo, eu sei que dois mais dois é igual a quatro. Eu não preciso justificar esse meu conhecimento me baseando nas experiências que tenho no mundo externo, ou seja, esse conhecimento não é empírico. Eu sei isso apenas pensando sobre o que é dois e o que é a operação de somar, de modo que eu justifico que dois mais dois é quatro apenas pensando sobre isso, eu justifico a priori. Mas imagina agora que esse gênio maligo é tão do mal que até isso ele nos faz errar. Toda vez que pensamos sobre dois mais dois ele, por pura maldade, resolve nos fazer enganar e dizer que é quatro. E ele é tão bom em cobrir seus passos que jamais saberíamos que estamos sendo enganados. E aí? Como poderíamos ter certeza sobre os próprios cálculos da matemática, que seria um refúgio para nossas certezas mesmo se estivéssemos sonhando?

Bom, nos encontramos no mesmo problema de pôr em dúvida nossos sentidos e justificações para o conhecimento empírico, mas agora ele se estende para certos conhecimentos a priori, ou seja, para justificações que fazemos apenas pelo pensamento. Descartes aceita esse argumento cético novamente. Se podemos meramente conceber a existência de um gênio maligno capaz de nos confundir quando fazemos cálculos matemáticos e certas inferências que são justificadas apenas pelo pensamento, então devemos considerar esses tipos de raciocínios passíveis de engano.
Se podemos nos enganar, de acordo com o método proposto por Descartes, devemos recusar. Estamos na tarefa de procurar algo que seja conhecido por nós de modo claro e distinto, que nenhum cético poderia atacar. Eis que o Descartes propõe o seu famoso Cogito. Vejamos as palavras dele:

“Resolvi fazer de conta que todas as coisas que até então haviam entrado no meu espírito não eram mais verdadeira que ilusões de meus sonhos. Mas logo em seguida adverti que, enquanto eu queria assim pensar que tudo era falso, cumpria necessariamente que eu, que pensava, fosse alguma coisa. E, notando que esta verdade, eu penso, logo existo, era tão firme e tão certa que todas as mais extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de a abalar, julguei que podia aceitá-la, sem escrúpulo, como o primeiro princípio da filosofia que procurava.”
(Discurso do Método – René Descartes)
Cogito ergo sum, do latim significa “penso, logo existo”.

O mesmo que acontece com a famosa frase “ser ou não ser, eis a questão” de Shakespeare, o cogito cartesiano, expresso pela frase “penso, logo existo”, se tornou um marco da literatura. No entanto, ainda que muito divulgado e difundido, poucas pessoas o compreendem de verdade. O cogito visa ser a pedra fundamental de todo o conhecimento. A ideia de Descartes é que se algo faz perguntas, questiona, então pensa. E se essa coisa pensa, podemos inferir que ela existe – visto que seria necessário que existisse algo para pensar. É indubitável que quando estamos questionando nossas justificativas para todo o conhecimento, quando estamos recusando tudo aquilo que podemos ter dúvidas, nós estamos pensando. Portanto, se estamos pensando, então existimos. Esta conclusão de Descartes seria conhecida de modo claro e distinto, algo que nenhum cético poderia pôr em dúvida. O cogito seria assim o princípio filosófico, o alicerce, para suas investigações.

Com o cogito Descartes também defende sua primeira principal tese: nós somos essencialmente uma substância pensante. O que nos torna existentes é a nossa capacidade de pensar, não termos ou não um corpo. Ou seja, ser um corpo não é parte da minha essência.

Mas o que nos assegura que o cogito está correto? Pelo fato de que ele é uma ideia clara e distinta, que vemos sua veracidade apenas ao pensar nela. Sempre que percebemos algo deste modo, ficamos certos de sua verdade. No entanto, se pensarmos sobre os objetos materiais e todas suas propriedades, Descartes afirma que as únicas coisas que conhecemos de modo claro e distinto são suas formas, tamanho e movimento. Eis que Descartes chega a sua segunda tese: a matéria é extensão em movimento.

Mas o que nos assegura que tudo o que reconhecemos como “claro e distintamente” é verdadeiro? A existência de Deus, que assegura minha existência como substância pensante. Portanto, Descartes fica obrigado a estabelecer a existência de Deus.

Os dois principais argumentos que Descartes apresenta à favor da existência de Deus são chamados de “argumentos ontológicos”, visto que visam assegurar a existência de Deus analisando o conceito da perfeição. Vejamos como eles se estruturam:
  • Argumento Ontológico (a):
Temos em nós a ideia da perfeição. Ao observarmos certas propriedades, nós conseguimos muito bem compreender o que é ter essa propriedade instanciada perfeitamente. Por exemplo, quando olhamos para um prato circular nós compreendemos o conceito de círculo, mas a ideia que obtemos é imperfeita. Mas, ao extrapolarmos a ideia imperfeita de círculo, compreendemos de modo claro e distinto o que é um círculo perfeito, mesmo nunca tendo visto um. A ideia de perfeição, por sua vez, não poderia ser causada em mim por outra coisa que não um ser que é em si perfeito. Um ser imperfeito pode causar em mim uma ideia imperfeita. Como no exemplo do prato, que causa diretamente a ideia de um círculo imperfeito. Mas e a ideia de perfeição? Essa ideia tem de ser dada diretamente a nós. Se dissermos que conhecemos a perfeição por que primeiro conhecemos a imperfeição, e depois extrapolamos a ideia de imperfeição para enfim conhecer a ideia de perfeição, estamos pressupondo que já sabemos o que é a perfeição. Quando extrapolamos a ideia de imperfeição, o fazemos baseado no que é a perfeição. A ideia de perfeição não pode ser conhecida por nós desse modo. Ela deve, então, ser causada por um ser perfeito. Esse ser perfeito é Deus.
  • Argumento Ontológico (b):
Deus, por definição, é um ser perfeito. Para ser perfeito, um ser deve incluir em si todas as perfeições. A existência parece ser uma perfeição. Pois pense, por exemplo, na extrema bondade, ou perfeição moral. Um ser que não existe não pode ser bondoso, pois a bondade implica que ele seja moralmente correto, e um ser inexistente não pode ser moralmente correto – um ser inexistente não age, não tem ações que possam ser corretas o incorretas. A perfeição moral implica, deste modo, que algo precisa existir para que possa ser moralmente perfeito. Assumimos que Deus é um ser que tem em si todas as perfeições, o que inclui a perfeição moral. Portanto, para que Ele seja moralmente perfeito, Ele deve existir.

Com esses dois argumentos Descartes pensa que estabelece a existência de Deus. Como vimos, estabelecer que existe um Deus bondoso garante, de acordo com Descartes, que quando reconhecemos algo de modo claro e distinto nós estamos justificados em acreditar que isso é verdadeiro. Isso permite que aceitemos o cogito como fundamento para nosso conhecimento.

Quando Descartes procura por um fundamento último para todo o nosso conhecimento, ele assume que todo conhecimento que obtemos da experiência são passíveis de erros. Com o argumento do sonho e do gênio maligno ele supõe que, não importa o que façamos, os nossos conhecimentos do mundo externo sempre podem ser falsos. Nada nos garante que não estejamos sonhando ou que não haja um gênio maligno. Desse modo, ao fundamentar o conhecimento, Descartes procura um conhecimento que sejamos capazes de justificar a priori. Ou seja, um conhecimento que não precisamos usar da experiência para sabermos que é verdadeiro. Como vimos, ele encontra no Cogito esse fundamento. No entanto, ao recusar que um conhecimento empírico possa ser o fundamento de todos os nossos conhecimentos, Descartes inaugura uma das principais correntes filosóficas da modernidade. Nomeadamente, ele funda o “racionalismo”. O racionalismo é a tese de que a razão, e não os sentidos, tem papel fundamental no processo de adquirir conhecimentos substanciais acerca da realidade. Como veremos a frente, o racionalismo opõe ao chamado “empirismo”, que é a tese exatamente oposta, isto é, que nossos sentidos tem o papel predominante na aquisição de conhecimentos substanciais acerca da realidade. Dito em outro modo, para o racionalismo o fundamento de toda a nossa estrutura de conhecimento se funda em conhecimentos a priori; enquanto que para o empirismo essa estrutura de conhecimento é fundamentada em conhecimentos empíricos, ou a posteriori.

Para entendermos Descartes precisamos ter sempre em nossa cabeça cinco coisas: (1) Seu objetivo; (2) O método cartesiano; (3) O que é o Cogito e como Descartes o fundamenta; (4) A distinção mente-corpo; (5) O racionalismo.

(1) Seu objetivo
Descartes tinha como objetivo descobrir os fundamentos do nosso conhecimento. Um fundamento tal que é indubitável e que, a partir dele, podemos justificar todos os nossos conhecimentos sobre a realidade.

(2) O método cartesiano
O método cartesiano se caracteriza pela a recusa de todo o tipo de afirmações que podemos, por algum motivo, ter dúvida. Ou seja, se algum cético pode questionar a veracidade de uma certa afirmação que aceitamos, então essa afirmação deve ser recusada.

(3) O que é o Cogito e como Descartes o fundamenta
Temos o objetivo e o método que ele usará. O Cogito, enfim, é o fundamento do nosso conhecimento tal como propõe Descartes. A ideia é que seria impossível algo pensar e não existir. Essa afirmação seria indubitável até mesmo para um cético. Como ele fundamenta o Cogito? Essa parte podemos subdividir em três perguntas: (a) O que garante que o Cogito está correto? O fato de conhecermos ele de modo claro e distinto. (b) O que me assegura o princípio de que qualquer coisa que eu veja clara e distintamente é verdadeiro? A existência de um Deus benevolente. (c) Mas o que nos garante que Deus existe? Os argumentos ontológicos.

(4) A distinção mente-corpo
Descartes, ao chegar no Cogito, afirma que o que garante nossa existência é sermos seres pensantes. Isso seria parte de nossa essência; não o nosso corpo. Além disso, quando voltamos nossa atenção para objetos materiais, nós não conhecemos – de modo claro e distinto – nada além de certas propriedades como forma, tamanho e movimento. Logo, a matéria é caracterizada como extensão em movimento.

(5) O racionalismo
Para Descartes, toda afirmação que só podemos conhecer através da experiência (ou seja, empiricamente) pode ser posta em dúvida. Sempre haverão argumentos céticos. Deste modo, para fundamentar todo o nosso conhecimento, precisamos nos assegurar de modo inquestionável da verdade desse princípio primeiro. Só podemos garantir a veracidade, fugindo dos argumentos céticos, de afirmações que podemos conhecer sem o auxílio da experiência (ou seja, conhecer a priori). Portanto, o fundamento para todo e qualquer conhecimento substancial sobre a realidade será fornecido apenas pela razão pura, e não pelos sentidos.

Bom, essa foi uma pequena introdução à obra do filósofo René Descartes. Espero que tenham gostado.
Adoramos!

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