terça-feira, 15 de março de 2016

Método e rigor



O mínimo que você precisa saber sobre Descartes para não ser um idiota.
mar 1, 2015



Se há um panteão dos filósofos mais influentes que já existiram, René Descartes com certeza faz parte dele. Em 1596, período em que Shakespeare escrevia Hamlet, Descartes nasce no vilarejo de Touraine, na França, que posteriormente foi batizado em sua homenagem passando a chamar “La-Haye-Descartes”. Considerado como o pai da filosofia moderna, Descartes passou dos 11 aos 19 anos estudando os clássicos e filosofia no colégio jesuíta de La Flèche. Durante toda a sua vida ele foi católico, mas passou a maior parte de sua maturidade na Holanda, país protestante que era conhecido por ser sua liberdade de expressão e religiosa – ao menos em comparação com os outros países europeus da época.

 Maurício de Nassau

Ao 20 anos, em 1616, Descartes se formou em direito em Poitiers, mas abandonou seus estudos e se alistou em dois exércitos diferentes. Sim, ele pegou em armas nas guerras religiosas que dividiram a Europa e se alistou em ambos os lados, em períodos diferentes. Para ter uma ideia, ele chegou a se alistar no exército de Maurício de Nassau – sim, aquele Conde (que se tornou príncipe depois) que veio ao Brasil com a Companhia das Índias Ocidentais. Descartes, ainda que seja considerado um dos maiores filósofos da história da filosofia, diferente dos outros filósofos ele jamais lecionou. Ele era um homem privado, mas que queria sua obra o mais difundida possível. Tanto é que sua obra mais famosa não foi publicada originalmente no latim, língua adotada nas universidades e meios letrados sendo considerada a mais “culta”, mas ele escreveu diretamente no francês, de forma que pudesse ser entendido por todos – ainda que não fosse um acadêmico. Além disso ele zombava a seus amigos sobre sua capacidade de escrita, que ainda hoje é clara e objetiva (muito diferente dos textos clássicos de filosofia) fazendo com que seus livros pudessem ser lidos “como se fossem romances”.

 Plano cartesiano

Descartes, ainda que seja reconhecido como o pai da filosofia moderna, também é estudado na física e matemática, reverenciado como aquele que lançou as fundações da geometria analítica. Até hoje é ensinado nas escolas as coordenadas cartesianas, que foram batizadas a partir da forma latina de seu sobrenome, Cartesius. Descartes foi um cientista moderno. Quando um estranho pedia para ver sua biblioteca, Descartes apontava para as carcaças de um animal dissecado, além dele próprio fabricar as lentes que usava em seus experimentos de ótica. Ele confiava na experiência prática, antes que no aprendizado teórico. Mas confiava ainda mais em suas reflexões filosóficas. Em 1632, Descartes estava prestes a publicar uma obra que visava explicar “a natureza da luz, o Sol e as estrelas fixas que a emitem, os céus que a refletem ou transparentes ou luminosos e do Homem, seu espectador”. Seu sistema era heliocêntrico, ou seja, a terra era apenas mais um planeta girando em torno do Sol. Essa obra foi intitulada “O Mundo” e estava prestes a ser impresso quando Descartes descobriu que Galileu tinha acabado de ser condenado por sustentar o sistema copernicano, que também é heliocêntrico. Para evitar conflitos e ser perseguido, ele guardou sua obra em seus arquivos.

Ao invés de publicar sua obra O Mundo, Descartes resolveu publicar em 1637 “alguns exemplos de seu método”, que continham como prefácio “um discurso para bem conduzir a própria razão e procurar a verdade nas ciências”. Entre as obras, que são lidas em sua maioria pelos historiadores da ciência apenas, está uma das obras mais famosas de Descartes – que diferente das outras é lida até hoje pelas mais diversas áreas, principalmente pela Filosofia. O seu Discurso do Método pode ser considerado uma das obras mais populares entre todos os clássicos da filosofia, cuja importância é comparável às obras de Platão e Aristóteles, com a vantagem de ser uma obra curta e muito mais legível por um leitor não especializado. Logo em sua introdução há uma das frases filosóficas que pode ser adaptada para todos os tempos e sociedades, pois parece atingir em cheio a natureza do ser humano:

“O bom senso é a coisa mais bem distribuída no mundo, pois cada um pensa estar tão bem provido dele que mesmo aqueles que são mais difíceis de se contentar em qualquer outra coisa, não costumam desejar tê-lo mais do que o têm.(…)”

O Discurso do Método é a obra de Descartes que sintetiza seu pensamento diante do modo como devemos adquirir conhecimento. Do método que devemos usar, de acordo com ele, para conseguirmos encontrar verdades sobre nós e sobre o mundo a nossa volta. Tomando para si a ideia de empreender uma reforma de todo entendimento humano, tentando apresentar que todas as disciplinas eram meros ramos de uma única e maravilhosa ciência, fundamentada sobre os alicerces da filosofia, Descartes oferece seu método. Nesta obra sucinta ele apresenta seu método, mas apenas na obra Meditações Metafísicas, ou também traduzida como Meditações Sobre a Filosofia Primeira, que

 Discurso do Método, obra de Descartes publicada em 1637 que sintetiza seu método filosófico.

Descartes apresenta os argumentos para defender sua posição filosófica. Uma curiosidade sobre esse texto é que antes de ser publicado, Descartes pediu para um amigo encaminhar o texto para alguns acadêmicos e pensadores da época, esperando por comentários e críticas. Descartes recebeu seis conjuntos de objeções às teses apresentadas no Discurso do Método, que foram impressos junto das réplicas feita por Descartes, em um extenso apêndice à primeira edição de 1641. Sendo assim, o Discurso do Método foi a primeira obra revista por pares da história, isto é, a primeira obra que recebeu comentários, críticas e objeções antes de ser publicada. Esse método de revisão por pares é hoje algo natural no meio científico e acadêmico. Todos as obras científicas atualmente, sejam livros ou artigos, passam por revisão de especialistas. No caso dos livros a revisão geralmente é feita tal como Descartes fez, ou seja, fazendo o texto circular no meio dos especialistas da área. Já no caso dos artigos, as revistas especializadas (chamadas de “periódicos acadêmicos”), ao receberem um artigo para a publicação, fazem com que o artigo passe por uma equipe de revisores antes de aceitar ou não a publicação. A isso também devemos a Descartes.

Diferente dos filósofos medievais, que se engajavam cada um a seu modo na tentativa de transmitir um corpo de conhecimento já fundamentados em escritores clássicos, e que tal transmissão poderia apenas tornar o aperfeiçoamento de ideias possível; E diferente dos filósofos renascentistas, que pensavam estar redescobrindo e oferecendo fundamentações modernas para os textos antigos, sem cair na exegese tal qual faziam os medievais; Descartes via a si próprio como um divisor de águas, como o primeiro filósofo desde a Antiguidade a apresentar uma tese de fato inovadora. Ainda que seja argumentável se ele de fato conseguiu isso, é consenso entre os filósofos e historiadores da filosofia que Descartes desenvolveu, ou ao menos apresentou um sofisticado sistema filosófico poucas vezes visto até então.

 René Descartes, filósofo francês e considerado o pai da filosofia moderna.

O método proposto por Descartes pode ser resumido da seguinte maneira: devemos pôr em dúvida tudo aquilo que pode nos parecer falso. Deveríamos encarar com ceticismo tudo o que nos apresentam, e com essa mesma postura deveríamos encarar tudo o que defendemos. De acordo com esse método, deveríamos sempre fornecer fundamentações sólidas para nossas teses, fundamentações essa que sejam irrefutáveis a luz do ceticismo. A partir dessa fundamentação deveríamos reconstruir todo o nosso edifício de conhecimento. Teríamos assim uma base, um fundamento inquestionável que a partir dele poderíamos, por argumentos dedutivos e por um método claro e criterioso, remontar passo-a-passo esse edifício. Assim, enfim, teríamos um conhecimento fundamentado, aceito indubitavelmente (ou seja, sem dúvida ou questionamento contra), de modo que poderíamos afirmar com certeza o que conhecemos, sem recairmos nos argumentos céticos e nas ilusões do raciocínio obscuro e infundado. Deste modo, esse método se enquadra como uma tentativa de fugir dos argumentos céticos.

Duas ideias chaves no pensamento de Descartes, que são apresentadas já no Discurso do Método, é que os seres humanos são caracterizados por sua mente, são substâncias pensantes. Isso se distingue do seu corpo, que é um objeto físico e material. A matéria seria a extensão em movimento. Essa distinção entre mente e corpo é chamada de “dualismo”. Se hoje algumas pessoas têm a tendência natural de pensar que mente e matéria são duas coisas distintas (algumas pessoas até mesmo identificamos a alma como sendo a mente), é devido ao dualismo proposto por Descartes.

A aplicação sistemática do método proposto por Descartes, como vimos, visa apresentar uma fundamentação indubitável para todo o conhecimento. Deste modo, quando perguntarmos quais a justificativas temos para uma certa crença, essa justificação remontaria a uma cadeia de justificações que teria em sua base essa fundamentação indubitável, resultante do método de Descartes. Seria a justificação de todas as justificações, digamos assim.

Para evitar sermos conduzidos ao erro, diz o método, devemos recusar tudo que possa ser posto em dúvida. Eis que ele assume o ceticismo para argumentar a favor de sua tese. Vamos ver como:

Nenhum comentário:

Postar um comentário