sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Chomsky e a busca humana de si



Chomsky: “por que tenho esperanças”

Publicado há 2 dia - em 17 de fevereiro de 2016 » Atualizado às 10:33
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Em Pauta



 
Ao lançar novo livro, aos 87, ele debate linguagem, pensamento e a contraditória natureza humana. Mas não esquece política e explica por que mantém, em meio à tempestade, aposta no “socialismo libertário”
Entrevista a C.J.Polychroniou, na Truthout | Tradução: Inês Castilho| Imagem: Jared Rodriguez


Uma das questões centrais e mais perturbadoras da filosofia é “Quem somos nós?”. De fato, virtualmente todas as questões essenciais da civilização humana – poder, autoridade e governo decorrem da pergunta sobre que tipo de seres somos.

Mas haverá realmente algo que nos distingue como espécie? Ou, para colocar a questão num contexto filosófico mais tradicional, haverá algo como “natureza humana”? Filósofos clássicos como Platão e Aristóteles pensavam que sim, da mesma forma que a maioria dos filósofos que fazem parte da tradição moderna, de Thomas Hobbes a Nietzsche. Claro, os cientistas também investigaram a natureza humana, e continuam a fazê-lo até hoje, sendo a questão de particular interesse para linguistas, biólogos evolucionistas, neurocientistas e psicólogos.

Noam Chomsky, um dos linguistas mais influentes do mundo (o mesmo estudioso fecundo conhecido em todo o mundo por sua crítica mordaz à política externa dos Estados Unidos e análise crítica num amplo leque que temas sociais e políticos), também ocupou-se, em grande parte de sua vida, com a questão perene de que tipo de ser nós somos. Suas contribuições inovadoras no campo da linguística avançaram consideravelmente nossa compreensão da mente humana – o que por sua vez influenciou diversas áreas de estudo, da ciência cognitiva e ciência da computação até a filosofia e a psicologia.

O livro mais recente de Chomsky, que acaba de ser lançado pela editora da Universidade Columbia (Columbia University Press), é adequadamente intitulado “Que tipo de seres somos nós?” (“What Kind of Creatures Are We?”). O livro é um conjunto de palestras feitas por Chomsky na Universidade de Columbia em dezembro de 2013, nas quais investiga áreas como ciência cognitiva, linguística, filosofia e teoria política. Conversei com Chomsky sobre o livro, sua exploração científica da linguagem e da mente, e sua visão sobre sociedade e política nesta entrevista exclusiva.


Seu livro mais recente reúne suas investigações sobre mente e linguagem e a forma como vê, há muito tempo, a sociedade e a política. Vou começar perguntando se você sente que a abordagem biolinguista sobre linguagem que desenvolveu nos últimos 50 anos ainda está aberta a explorações adicionais e, se sim, que tipo de questões a respeito da aquisição da linguagem permanecem sem resposta.
Não só eu, de forma alguma. Várias pessoas. Um dos verdadeiros pioneiros foi Eric Lenneberg, um grande amigo do início dos anos 1950, quando essas ideias estavam fermentando. Seu livro, Biological Foundations of Language (Fundamentos Biológicos da Linguagem), é um clássico que permanece.

O tema está muito aberto a novas explorações. Há questões não respondidas bem na fronteira da investigação, do tipo crucial para avançar no que Tom Kuhn chamou de “ciência normal”. E as questões que estão além são tradicionais e tentadoras.

Um tópico que está começando a ser aberto a investigação séria é a realização da capacidade para linguagem e seu uso no cérebro. Isso é muito difícil de estudar. Questões assim são extremamente difíceis mesmo no caso de insetos, e para os humanos são incomparavelmente mais duras, não apenas devido à complexidade do cérebro, muito maior. Conhecemos um bocado sobre o sistema visual humano, mas isso porque é mais ou menos o mesmo sistema visual de gatos e macacos, e (corretamente ou não) permitimos experimentos invasivos com esses animais. Isso é impossível para humanos, porque a capacidade humana da linguagem é muito isolada, biologicamente. Não há analogias relevantes em outros pontos no mundo biológico. É um tópico fascinante por si mesmo.

Apesar disso, novas tecnologias não invasivas estão começando a prover evidências importantes, que às vezes até começam a influenciar, de forma interessante, questões em aberto sobre a natureza da linguagem. Elas estão nas fronteira da investigação, junto com uma grande e desafiadora massa de problemas sobre as propriedades da linguagem e os princípios que as explicam. Muito, muito além – além talvez até do alcance humano – estão perguntas como as que animaram o pensamento (e imaginação) tradicionais sobre a natureza da linguagem. Refiro-me às questões de grandes figuras, tais como Galileu, Descartes, von Humboldt e outros. Entre elas, é fundamental o que tem sido denominado de “os aspectos criativos do uso da linguagem”, a habilidade de todo ser humano para construir na mente, e compreender, um número ilimitado de novas expressões para exprimir seus pensamentos, e usá-los de maneira apropriada às circunstâncias – mas não causada por elas – uma distinção crucial.

Somos “estimulados e inclinados”, mas não “compelidos”, na terminologia cartesiana. Estes não são, de modo algum, assuntos restritos à linguagem. A questão é colocada graficamente por dois expoentes da neurociência, que estudam movimento voluntário, Emilio Bizzi e Robert Ajemian. Revendo o estado atual da arte, eles observam que estamos começando a entender alguma coisa sobre o boneco e os cordéis, mas quem manipula a marionete mantém-se um total mistério. Devido a sua centralidade em nossas vidas, e seu papel crítico na construção, expressão e interpretação do pensamento, o uso normal da lingagem ilustra essas capacidades misteriosas de um modo particularmente dramático. Essa é a razão por que o uso da linguagem, para Descartes, era uma distinção fundamental entre os humanos e qualquer animal ou máquina, e a base para seu dualismo corpo-mente – o qual, ao contrário daquilo que se pensa frequentemente, era uma hipótese científica legítima e sensata em seus dias, com um destino interessante.

Qual é, a seu ver, a relevância filosófica da linguagem?
Os comentários acima começam a lidar com essa questão. Reconhece-se, tradicionalmente, que a linguagem humana é uma propriedade da espécie, comum aos humanos exceto em casos de patologias graves e, em essência, exclusiva dos humanos. Uma das contribuições de Lenneberg foi começar a fundamentar essa descontinuidade radical na moderna biologia, e o trabalho subsequente tem apenas fortalecido esta conclusão (um assunto que é contestado com ardor, mas de forma equivocada, acredito). Ademais, um trabalho iniciado também por Lenneberg revela que a capacidade humana da linguagem parece ser muito nitidamente dissociada de outras capacidades cognitivas.

A linguagem é, além disso, não apenas o veículo do pensamento, mas também, provavelmente, a fonte geradora de partes substanciais do nosso pensamento.
O estudo da linguagem provê também muitos insights para problemas filosóficos clássicos, sobre a natureza dos conceitos e sua relação com entidades externas à mente — uma questão muito mais intrincada do que frequentemente se imagina. E, de modo mais genérico, sugere caminhos para investigar a natureza do conhecimento e do julgamento humanos. Em outro domínio, um trabalho importante e recente de John Mikhail e outros forneceu suporte substancial para algumas ideias negligenciadas de John Rawls sobre as relações entre nossas teorias morais intuitivas e a estrutura da linguagem. E muito mais. Há boas razões por que o estudo da linguagem sempre foi uma parte central do discurso e da análise filosóficos, e novas descobertas e insights, penso eu, têm relação direta com muitas preocupações tradicionais.

O conhecido linguista Neil Smith argumenta, em seu livro Chomsky: Ideas and Ideals (Chomsky: Ideias e Ideais, Cambridge University Press, 1999), que você coloca de molho a problemática mente-corpo, não para mostrar que temos uma compreensão limitada sobre mente, mas sim que não podemos definir o que é o corpo. O que ele pode estar querendo dizer com isso?
Não fui eu que coloquei o assunto de molho. Quem fez isso foi Isaac Newton. A ciência moderna inicial, de Galileu e seus contemporâneos, era baseada no princípio de que o mundo é uma máquina, uma versão muito mais complexa dos notáveis autômatos que eram então construídos por artesãos e excitavam a imaginação científica daqueles dias, tal como computadores e o processamento de informações fazem, hoje. Os grandes cientistas daquele tempo, inclusive Newton, aceitaram essa “filosofia mecânica” (significando a ciência da mecânica) como fundamento de seus empreendimentos. Descartes acreditou que havia estabelecido praticamente a filosofia mecânica, incluindo todo o fenômeno do corpo, embora reconhecesse que alguns fenômenos estavam além do seu alcance – inclusive, de forma crucial, os “aspectos criativos do uso da linguagem” descritos acima. Ele então, de forma plausível, postulou um novo princípio – na metafísica daquele tempo, uma nova substância, res cogitam, substância do pensamento, mente. Seus seguidores inventaram técnicas experimentais para tentar determinar se outros seres possuíam essa propriedade e, como Descartes, estavam preocupados em descobrir como as duas substâncias interagiam.

Newton demoliu esse cenário. Demonstrou que a visão cartesiana do corpo estava incorreta, e além disso, que não poderia haver uma descrição mecânica do mundo físico: o mundo não é uma máquina. Newton considerou essa conclusão tão “absurda” que ninguém capaz de boa compreensão científica poderia sustentá-la. Por conseguinte, Newton destruiu o conceito de corpo (material, físico etc.), da forma como era compreendido então, e não há realmente nada para substituí-lo, além “daquilo que nós entendemos mais ou menos”. O conceito cartesiano de mente permaneceu intocado. Tornou-se convencional dizer que nos livramos do misticismo do “fantasma na máquina”. Muito pelo contrário: Newton exorcizou a máquina, deixando o fantasma intacto, uma consequência muito bem compreendida pelos grandes filósofos do período, como John Locke.

Locke continuou a especular (no idioma teológico então aceito) que, assim como Deus deu à matéria as propriedades de atração e repulsão, que são inconcebíveis para nós (como demonstrado pelo “sensato Mr. Newton”), do mesmo modo podemos ter “acrescentado” à matéria a capacidade de pensar. A sugestão (conhecida como “sugestão de Locke” na história da filosofia) foi amplamente perseguida no século 18, particularmente pelo fisólofo e químico Joseph Priestley, adotada por Darwin, e redescoberta (aparentemente sem consciência das origens anteriores) pela filosofia e pela neurociência contemporâneas.

Há muito mais a dizer sobre essas questões, mas isso, essencialmente, é a que se referia Smith. Newton eliminou o problema mente-corpo em sua forma cartesiana clássica (não está claro que exista qualquer outra versão coerente), eliminando o corpo, e deixando intacta a mente. E, ao fazer isso, como concluiu David Hume, “embora Newton parecessetirar o véu de alguns dos mistérios da natureza, mostrou ao mesmo tempo as imperfeições da filosofia mecânica… e assim restaurou a essa obscuridade os segredos finais [da natureza], que sempre houve esempre irá haver.“
 em 2 partes, continua...

 

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