Como Putin
Tentou
Controlar a Internet
Escrito por Andrei Soldatov e Irina Borogan
16 October 2015 // 11:00 AM CET
A Rússia está reestruturando sua doutrina de
segurança de informação para 2016. Nessa nova fase, a internet é definida como
grande desafio para a estabilidade política do atual regime.
Segundo o esboço do documento,
publicado pelo jornal russo Kommersant nesta semana, os "serviços secretos"
e as "ONGs controladas" dos países ocidentais usam informações e
tecnologias de comunicação "como uma ferramenta para minar a soberania e a
integridade territorial" e "para desestabilizar a situação política e
social" de outros países.
O medo do que acontece na
internet cresce dentro do Kremlin. É o reflexo de uma preocupação muito mais
antiga. A natureza global e horizontal da internet é, há décadas, uma ameaça ao
desconfiado serviço secreto russo, herdeiro direto da antiga KGB.
Nesse trecho exclusivo do The Red Web, texto recentemente publicado por
Andrei Soldatov e Irina Borogan, os autores descrevem como o Kremlin tem
tentado reescrever as leis que regem a internet para torná-la mais
"segura" segundo as normas do serviço secreto russo.
Vladimir Putin estava seguro de que todas as coisas
do mundo — incluindo a internet — existiam dentro de uma estrutura hierárquica
e vertical. O presidente russo estava convencido de que havia uma figura
soberana no controle da internet. Para ele, os Estados Unidos comandavam a rede
por meio da sua agência de inteligência, a CIA.
Ele queria acabar com essa
hegemonia.
Enquanto se esforçava para mudar
as leis dentro da Rússia, Putin tentava mudar as regras do resto do mundo. O
objetivo era fazer com que outros países, sobretudo os Estados Unidos,
aceitassem o direito da Rússia de controlar a internet dentro de seu território
– isto é, poder censurá-la e suprimi-la caso as informações online afetassem o
poder do chefe de estado.
Andrey Krutskikh devotou toda sua
carreira ao controle de armamentos no Ministério de Relações Exteriores da
Rússia. Ele se juntou ao serviço diplomático em 1973, logo depois de sair da
faculdade, e trabalhou na divisão durante os últimos dezoito anos da União
Soviética. Krutskikh admirava o estilo diplomático do intransigente ministro
das relações exteriores, Andrei Gromyko, conhecido informalmente no mundo
ocidental como Sr. Nyet ( "Sr. Não", em português). Krutskikh sempre
descrevia Gromyko como “um dos grandes”.
Desde o início de sua carreira, o
trabalho de Krutskikh girava em torno do desarmamento nuclear e dos principais
adversários da Rússia, os Estados Unidos e o Canadá. Quando ele tinha 24 anos,
em 1975, foi mandado para Salt Lake City como parte de uma comissão soviética
encarregada de negociar o controle estratégico de armas nucleares. A
experiência de negociar com seus rivais em território americano marcou sua
vida. Naqueles tempos, os diplomatas soviéticos tinham muito poder; eles
decidiam o destino do mundo e falavam de igual para igual com os americanos.
Após o colapso soviético, no fim dos anos 90, Krutskikh manteve seu foco na
questão de controle de armamentos e subiu aos poucos na hierarquia do
ministério.
Putin estava convencido de que
havia alguém controlando a internet.
Ele não era um diplomata calmo;
seus trejeitos eram enérgicos, expressivos, e suas mãos estavam sempre em
movimento. Depois de um tempo no cargo, Krutskikh começou a se indagar como o
controle de armamentos se encaixaria no campo dos ciber-conflitos.
Uma ideia parecida estava
surgindo entre um pequeno grupo de generais russos que comandavam a FAPSI, a
poderosa agência de inteligência eletrônica vinda da antiga KGB.
A sede da agência funcionava em
um prédio moderno com antenas gigantes no topo, não muito longe da sede da KGB.
Assim como o NSA nos Estados Unidos, o FAPSI era responsável pela segurança de
informação e pela inteligência eletrônica. Seus generais assistiram ao
crescimento da internet com desconfiança durante vários anos. Nos seus
primórdios, a internet russa havia sido construída com tecnologia ocidental, e
os generais da FAPSI temiam que ela pudesse ser invadida pelos americanos.
O líder desse grupo de
desconfiados era Vladislav Sherstyuk, coronel-general da divisão de
inteligência da agência e agente da KGB desde 1966. No começo do anos 90, ele
se tornou chefe do misterioso e poderoso Terceiro Departamento do FAPSI, setor
encarregado de espionar as telecomunicações estrangeiras. Todos os centros
russos de espionagem eletrônica de outros países respondiam a esse
departamento, incluindo o centro de intercepção de rádio de Lourdes, em Cuba,
encarregado de monitorar e interceptar rádio-comunicações vindas dos Estados
Unidos.
Sherstyuk era um especialista em
espionagem; ele estava determinado a usar a telecomunicação para roubar
segredos americanos e proteger a Rússia de espiões como ele. Isso fazia com que
ele desconfiasse da internet, onde nada estava sob seu controle.
Quando a guerra da Chechênia
estourou, Sherstyuk foi posto no comando da equipe da FAPSI enviada para o
centro do conflito, onde ele passou a interceptar comunicações chechenas. Em
dezembro de 1998, ele foi indicado como diretor. Entre várias funções, a FAPSI
tinha um papel muito importante no controle das redes de comunicação mais
sigilosas do governo russo.
Krutskikh e os generais da FAPSI
falavam a mesma língua de desconfiança — um dialeto de ameaças representadas
pela internet. No início de 1999, Krutskikh participou da elaboração de uma
resolução para a Assembléia Geral das Nações Unidas que, do ponto de vista
russo, as informações da internet poderiam ser utilizadas "para fins criminosos
ou terroristas" e até para ameaçar "a seguranças de cada
Estado". Em outras palavras, a tecnologia da informação era perigosa e
deveria portanto ser controlada. A resolução foi aprovada sem passar por uma
votação.
Krutskikh e os generais viam a
internet como o campo de batalha da guerra da informação. (Esse termo não deve
ser confundido com a ciberguerra, que consiste em proteger as redes digitais de
uma determinada nação de possíveis ataques de hackers.) Para os generais,
representava algo ameaçador e incluía "desinformação e informações
tendenciosas" para incitar a guerra psicológica e manipular as escolhas
dos indivíduos.
Em dezembro de 1999, Sherstyuk
foi transferido da FAPSI para o Conselho de Segurança Russo, um comitê
consultivo subordinado ao presidente. Lá, ele passou a supervisionar um
departamento especializado em segurança da informação e trouxe com ele suas
ideias sobre a internet. O Conselho de Segurança costuma ser composto por
oficiais de alta patente, incluindo o presidente, que se encontram de tempos em
tempos.
Em 2000, a equipe de Sherstyuk
elaborou a “Doutrina de Segurança da Informação da Federação Russa",
que incluía uma lista longa de ameaças que ia do "comprometimento de chaves
e proteção criptográfica de informações", passando por
"desvalorização dos valores espirituais", "redução do potencial
espiritual, moral e criativo da população russa" e chegava à
"manipulação de informações (desinformação, omissão e distorção)."
Uma das ameaças mais sinistras do
documento é "o desejo de certos países de dominar e infringir os
interesses da Rússia no espaço de informação global".
O Kremlin
à noite. (Crédito: Axel Axel/Flickr)
Putin aprovou a nova doutrina em
9 de dezembro de 2000. A FAPSI foi desmantelada em 2003, mas as ideias daqueles
generais desconfiados continuaram vivas. Sherstyuk continuou no Conselho de
Segurança e algumas de suas ideias foram reiteradas quando Nikolai Klimashin,
um alto oficial do FSB que compartilhava algumas de suas opiniões, foi
transferido para o Conselho de Segurança. Sherstyuk fundou e comandou o
Instituto de Segurança da Informação da Universidade Estadual de Moscou, um
grupo de pesquisa voltado para a política externa e a segurança da informação
do governo russo.
Na mesma época, Krutskikh se
tornou o chefe-adjunto do Departamento de Segurança e Desarmamento do
ministério.
Krutskikh vinha há anos repetindo
em conferências internacionais que a Rússia queria controlar seu próprio pedaço
da internet. Enquanto outros, incluindo os Estados Unidos, viam a internet como
um reino de liberdade aberto para todo o mundo, Krutskikh insistia que a Rússia
deveria ter o poder de controlar o que é dito dentro de seu território.
Krutskikh temia a possibilidade de que, sem esse controle, forças hostis
pudessem usar a internet para atacar a Rússia e seu povo.
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